A Atividade Policial na Doutrina Processual Penal
A atividade policial na doutrina
processual penal, por Tourinho Filho
(22|05|09) Jurídico | A mais recente visão do processualista penal Fernando da Costa Tourinho Filho sobre as funções e garantias da autoridade policial.
Quando da unificação dos Códigos de Processo Penal, nos idos de 1940, malgrado as pretensas vantagens do Juízo de Instrução, o legislador optou pela manutenção do Inquérito Policial, considerando, principalmente, a vastidão territorial e, em numerosos casos, as grandes distâncias entre as comarcas e os municípios que as integram. Por outro lado, não nos parece que o Juízo de Instrução seja o ideal. Nesse sistema, a prova é recolhida pelo próprio Juiz. A investigação fica, praticamente, a seu cargo. “La fonction d’instruction, c’est-à-dire, de recherche dês preuves, qui appartient au juge d’instruction…”. Certo que na França é assim. Lá, entretanto, essa função do Juiz de Instrução é distinta daquela atribuída ao Juiz que preside ao julgamento. A vantagem aí seria apenas a desnecessidade do inquérito, como peça preparatória à propositura da ação penal.
Observe-se que naquele país, berço da liberdade, igualdade e fraternidade, a instrução criminal que antecede ao julgamento e que suprime o nosso inquérito é secreta e não contraditória. A vantagem seria apenas a supressão do inquérito, vale dizer, a desnecessidade de repetir, praticamente, o que foi colhido pela Polícia…
Desse modo, finda a instrução, a remessa dos autos ao Juízo de Julgamento equivale a uma verdadeira pronúncia. Note-se: uma decisão respaldada em provas colhidas unilateralmente, sem a participação da Defesa, servirá de ponto de partida para o julgamento.
E qual seria a diferença entre um Juiz Instrutor e um Delegado de Polícia, no nosso ordenamento, se ambos têm a mesma formação jurídica? Apenas esta: as provas colhidas pelo Juiz Instrutor já integrariam a instrução criminal e as colhidas pelo Delegado de Polícia serviriam apenas e tão-somente para a propositura da ação penal… Claro que o inquérito satisfaria melhor, como satisfaz, aos interesses da sociedade (evitando-se um julgamento precipitado) e, ao mesmo tempo, protegeria melhor o indiciado, que não correria o risco de ser condenado com provas recolhidas sem a participação da defesa.
Alega-se que as Autoridades Policiais são atrabiliárias e violentam os direitos humanos, com os famosos instrumentos já conhecidos. Certo que as provas reclamadas para o ingresso na Magistratura, como no Ministério Público, são mais exigentes. Contudo, não se deve olvidar a justa ponderação de Alcalá-Zamora: “Por desgracia, en La selección de los candidatos a jueces, es más fácil cerciorarse de sua ciência que de su consciência y su temperamento…”(Derecho, cit., v. 1, p. 282).
A grande preocupação de parte da população, notadamente da população dita não classificada, é procurar, de uma forma ou de outra, denegrir a respeitabilidade, o sacrifício, a coragem e a dedicação de uma classe de homens públicos que se dedicam, praticamente 24 horas por dia, ao combate à criminalidade. E essa tendência denegridora está indo num crescendo avassalador, de sorte que, quando o povo se conscientizar do papel preponderante que a Polícia exerce na sociedade, o futuro já será triste e comprometedor, porque em razão dessas investidas, dessas censuras, das críticas desses pequeninos Demóstenes da diatribe, a Polícia vai se acomodando, vai se amofinando, partindo para o laissez-faire, laissez-passer, com receio, justo receio, de ser atingida, mais ainda, por essa corja de infelizes que passaram correndo pelas escolas “com as primeiras tinturas de velhacaria”. Se há Autoridades Policiais “que saem da linha”, podemos afirmar, com absoluta segurança, que não se trata de “privilégio” apenas deles… Os envolvidos nos escândalos da Previdência e os “anões do orçamento” que o digam…
E no dia que a Polícia cruzar os braços, cansada de servir de vidraça às estilingadas daqueles que têm interesse em vê-la imobilizada, para poderem ficar com os braços soltos para o roubo, para o assalto, para o furto, para o narcotráfico, para o peculato, “para enliçar e velhacar, imposturar e embolsar, chibar e gozar” a segurança do povo ficará apenas na reminiscência.
É claro que a Polícia deve agir com certa liberdade, mesmo porque, se ficasse presa a formalidades, os policiais não passariam de um grupo impotente que nada poderia fazer, não podendo agir com desenvoltura… Não é certo, sabemos todos nós, mas, não fosse a liberdade de ação da Polícia, muitos criminosos ficariam impunes e a própria Justiça não encontraria elementos para levar avante a maioria dos processos criminais.
Convenhamos todos: o trabalho que a Polícia desenvolve desvenda crime que nenhuma investigação apegada a formalismos seria capaz de fazê-lo. Ela tem seus métodos. Nós, Advogados, Promotores e Juízes, vergastamos tais métodos, mas, por outro lado, somos forçados a dar a mão à palmatória, em razão dos excelentes resultados que, muitas e muitas vezes, são alcançados. Não é fácil a tarefa de lutar corpo a corpo com a criminalidade. Falar num processo, requerer tais ou quais diligências ou deferi-las não constituem tarefas extraordinárias. Realizá-las, sim…
No dia em que se implantar o Juizado de Instrução neste país, das duas, uma: ou muitos e muitos crimes ficarão sepultados, ou os Magistrados passarão a adotar os mesmos métodos que hoje são condenados. E todos sabemos disso. Os Delegados de Polícia não são criminosos. São Bacharéis em Direito, como são os Advogados, Promotores e Juízes, com esta particularidade: a função que lhes cabe, de irem à rua em busca da verdade, os expõe a risco de vida, exige coragem e, por isso mesmo, não se lhes pode exigir o respeito a determinados princípios nem a regras e procedimentos preestabelecidos.
Há entendimento, respeitável, por sinal, no sentido de que devemos manter o Inquérito Policial sob a presidência do Ministério Público. Por que essa troca de chefia? Afinal de contas, ao contrário do que se dá nos Estados Unidos, França, Espanha e Portugal, por exemplo, o policial encarregado das investigações, entre nós, é um Bacharel em Direito. Tem a mesma formação jurídica dos Promotores e Juízes. Então, por que essa transposição de chefia? Não se pode dizer, entre nós, o que se diz em Portugal, que há um contraste bem acentuado no que respeita à cultura e concepção do Direito entre a Polícia e o Ministério Público. Se Delegados e Promotores são Bacharéis em Direito, se possuem a mesma formação universitária, no momento em que o Promotor passa a dirigir as investigações ele se transmuda em Delegado. E aí qual seria a diferença? Daqui a alguns anos, procurar-se-ia outro órgão para desempenhar a função do Promotor-Investigador, dadas as pretensas atitudes atrabiliárias…
A nosso ver, o sistema brasileiro supera, em muito, os demais. Parece-nos ser o melhor de todos. Poderíamos até dizer, parafraseando Winston Churchill quando afirmava que “a democracia é o pior dos regimes, à exceção de todos os outros”, expressão também usada por Jean-Claude Soyer a respeito da Justiça Francesa (La procédure pénale bilan dês reformes depuis 1993, Paris, Dalloz, 1995, p. 75): a nossa investigação preliminar ou preparatória para o exercício do direito de ação, conhecida como Inquérito Policial, é a mais abominável de todas, à exceção de todas as outras…
Evidente que um procedimento preparatório à propositura da ação penal é indispensável. Absolutamente indispensável. Mesmo na França, não obstante o sistema do Juízo de Instrução, cabe à Polícia Judiciária, sob a direção do Procurador da República, constatar as infrações penais e recolher as provas, tal como dispõe o art. 14 do Code de Procédure Pénale. Após, compete ao Ministério Público, se entender que a infração é de pouca monta, proceder ao classement sans suíte.
Parece-nos que o nosso sistema é o que mais se afina e se ajusta aos postulados de um processo que respeita os direitos fundamentais do homem. Colhem-se as primeiras informações a respeito do fato e autoria e, com base nesse conjunto de dados, o Ministério Público oferece a denúncia; uma vez instaurada a relação processual , compete às partes convencer o Magistrado com as suas provas e alegações. […]
Critica-se, e muito, a demora das investigações, mas ninguém critica o desenrolar moroso dos processos criminais. Criticam-se os pedidos e mais pedidos de dilação de prazo, mas raros são os membros do Ministério Público e da Magistratura que seguem, rigorosamente à risca, os prazos processuais… Não é fácil a incumbência de investigar o fato típico, sua autoria, motivos e circunstâncias, dentro em curto espaço de tempo. Com o aumento da criminalidade, o número de investigações é assombroso e o material humano insuficiente. […]
Há uma séria crítica à Polícia no sentido de poder sofrer pressão do Executivo ou mesmo de seus superiores e de políticos. É comum, em cidades do interior, a Autoridade Policial ficar receosa de tomar alguma medida que possa contrariar Prefeitos e Vereadores. Nesses casos, é o Ministério Público, então, que toma a iniciativa. Mas, para que se evitem situações como essas, bastaria conferir aos Delegados de Polícia, que têm, repetimos, a mesma formação jurídica dos membros do Ministério Público e Magistratura e, ao contrário destes, diuturnamente expõem suas vidas no desempenho de suas árduas tarefas, as mesmas garantias conferidas àqueles; irredutibilidade de vencimentos, inamovibilidade (salvo o caso de interesse público devidamente apurado) e vitaliciedade.
* Tourinho Filho, Fernando da Costa in Processo Penal. 30ª Ed. 2008, pág. 284/287.