Suicídio II – OS CONDENADOS
Por Natalício Cardoso da Silva*
Meus companheiros eram hediondos. Feios, magros, desalinhados, irreconhecíveis até pelos que os amaram na terra. Era uma assembleia numerosa de criaturas disformes _ homens e mulheres _ cujo traço comum era a alucinação. Todos trajavam roupas empastadas de lodo das sepulturas, trazendo a fisionomia alterada pelo sofrimento. Imaginai uma localidade, uma povoação envolvida eternamente por densa penumbra gelada, onde se aglomerassem tétricos fantasmas suicidas erguidos dos túmulos!
Pois era assim a multidão de criaturas que eu tinha por companheiros _ e também eu, já esquecido do meu orgulho, pertencia a tão repugnante massa; também eu era feio, alucinado, um pastoso como os demais!
Eu via _ não sei por qual meio, pois ainda estava cego. Mais do que ver através dos olhos, eu via através da alma e este era mais um castigo que me era imposto pois, se não visse absolutamente nada, meus sofrimentos teriam sido menores, por não saber o que se passava ao meu lado.
Eu via, aqui e ali, de quando em quando, meus companheiros repetindo o seu gesto suicida! As ânsias do enforcamento, os gestos desesperados por livrar o pescoço endurecido e arroxeado, dos farrapos de coradas ou de tiras de pano!
Via outros, como loucos, em correrias espantosas, bradando por socorro, em gritos alucinados, julgando-se de momento a momento, envolvidos nas cham,as que lhes devorara o corpo físico _ e que desde então, ardia sem tréguas. Estes que se mataram através do fogo eram, geralmente, mulheres.
Eis que via outros ainda, com o peito ou ouvido ou a garganta banhados em sangue. Oh! Sangue inalterável, permanente, que que nada conseguia estancar!
Havia aqueles outros sufocando-se na bárbara asfixia do afogamento, tentando nadar, à procura de socorro. Eles se mostravam aos demais, como na hora extrema do suicídio: ingerindo água aos gorgolejos, prolongando indefinidamente as cenas da agonia!
E havia ainda mais! O leitor me perdoe estes detalhes talvez desinteressante ao seu bom gosto literário _ mas uteis, com certeza, servindo de advertência aos de caráter impulsivo, condenados a viver neste seculo em que o suicídio se tornou uma quase epidemia. Não pretendo aliás, apresentar obra literária para deleitar temperamentos artísticos. Cumpro o dever sagrado de falar tão somente aos que sofrem e pensam, quem sabe, em procurar descanso no suicídio… Cumpro o dever de falar a verdade sobre o abismo que espera cada um dos ingênuos que procuram se desviar dos sofrimentos terrestres, pela porta da morte espontânea.
Como eu dizia, havia mais ainda. Destacavam-se pela fealdade impressionante, aqueles que haviam procurado o “olvido eterno” sob as rodas de um trem de ferro. Estes eram desfigurado, as roupas em farrapos, cobertos por feridas sanguinolentas, carnes retalhadas, confusas, num emaranhado de golpe, tal se fotografados fossem naquele momento exato em que as rodas de ferro lhes tivessem moendo as carnes, os ossos, as vísceras…
E, coisa incrível! Cada um de nós, do vale dos suicidas, recordando _ sem poder esquecer _ as cenas violentas do momento exato em que nos suicidáramos, criávamos os cenários e as cenas vividas em nossos últimos momentos na terra. Estas cenas criadas por cada um ao redor de si, eram vistas por todos os outros, espalhando maior tragedia por todas parte.
Assim, víamos aqui e ali, os suicidas balançando em sua cordas, víamos no outro lado, trens rápidos e barulhentos , colhendo o infeliz que se atirava sob sua rodas _ as carnes sendo rasgadas e trituradas;os gritos tresloucados de dor, espanto e arrependimento tardio.
Com a mente sempre voltada ao momento sistro, cada um de nós oferecia aos olhos dos demais, outras cenas: daqueles que, relembrando o suicídio por afogamento, mostrava-se á procura de ar, numa massa imensa de água! Homens e mulheres correndo desesperados _ uns ensanguentados, outros torcendo-se no meio das dores da morte por envenenamento, deixando à mostra sua carnes corroídas pela droga ingerida. Outros mais a gritarem por socorro, em correrias desabaladas, traziam o pânico ainda maior que os demais _ eram os incendiados que, como eterna bola de fogo, passavam espalhando chamas e fumaça, fazendo os companheiros recuarem, com medo que pudessem queimar-se ao seu contato.
Era a loucura coletiva! E, para coroar todos os sofrimentos, havia as penas morais. Ah, estas! Os remorsos, as saudades dos seres amados, a vergonha!
E outra dores: a fome, o frio a sede! A fadiga, a insônia, a fraqueza! E, oh, visão que não dava tréguas! O cadáver apodrecendo no túmulo, o mau cheiro, os vermes que o consumiam…era o desgraçado martírio: o martírio de quem buscou a morte, para o “alivio dos sofrimentos”!
Uruaçu, 29 de dezembro de 2011.
* Natalício Cardoso da Silva é Delegado Regional da Polícia Civil de Goiás
Fonte: Site www.mottafilho.com.br