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SELETIVIDADE PUNITIVA E INQUÉRITO POLICIAL

SELETIVIDADE PUNITIVA E INQUÉRITO POLICIALPor Ruchester Marreiros Barbosa*

Na coluna de hoje trago uma síntese sobre esta parte introdutória da obra coordenada por Andrián Marchisio, que foi resultado de um Seminário Internacional de Ministérios Públicos da América do Sul sobre a aplicação e análise do que chamamos no Brasil de princípio da oportunidade na ação penal, celebrado no mês de novembro de 2001 em Santiago, Chile, como alternativa de saída ao punitivismo irracional no processual.

Trata-se de um tema de altíssima indagação e parece que de pouca reflexão aqui no Brasil, pois este princípio traz sérias repercussões no inquérito policial, e enveredamos, portanto, pela causa provável para a instauração de uma investigação criminal, diminuindo o reflexo da seletividade punitivista que nosso sistema se tornou campeão, ou melhor, o terceiro no ranking, com aproximadamente 700.000 pessoas presas, sendo que deste total, 0,4% presos por crime contra a administração pública. 80% estão presos por tráfico e crimes contra o patrimônio. Algo cheira mal…

Trata-se de um debate entre as experiências sobre os Ministérios Públicos da Amérina Latina, principalmente Chile, Argentina, Venezuela, Bolívia, Paraguai, Equador e Colômbia, haja vista terem esses países operado uma reforma processual penal na qual passaram a adotar o princípio da oportunidade como critério de política criminal de investir em questões penais de maior gravidade como corrupção, lavagem de dinheiro e crimes de colarinho branco.

Por isso, a importância do direito comparado nos países latino americanos. O estudo comparado permite que os sistemas jurídicos também comparem seus problemas sociais e as diferenças culturais que legitimaram o surgimento do sistema.

A crise no sistema processual penal, principalmente na propositura da ação penal, se dá em razão da adoção da obrigatoriedade ou legalidade na qual para todo o crime o Estado toma para si a responsabilidade de investigar e propor a ação penal, sobrecarregando o sistema penal de tal forma que se cria falsamente um pequeno percentual de solução de casos diante da inflação de crimes que possui o sistema e correlato a isso a obrigatoriedade de demandá-los em juízo.

A crise se consolida diante da incapacidade do estado de aparelhar-se e combater crimes mais complexos diante do avanço das novas tecnologias e sofisticação da criminalidade organizada ou de criminosos intelectuais.

Consequentemente, por se adotar uma política de respostas rápidas ou utilitaristas ou emergenciais aos crimes menos complexos e mais ao alcance do sistema criminal começa-se a concretizar o que a criminologia crítica já profetizava a mais de 20 anos, que o sistema tornar-se-ia seletivo.

Diante disso, juristas da América Latina debatem uma saída alternativa a esta seletividade punitiva, enxergando como solução a disponibilidade investigação e da ação penal.

Para isso, é importante a análise do sistema processual penal dos países da América latina que passam pelos mesmos problemas de seletividade punitiva, bem como debater com aqueles que adotam o critério da disponibilidade da ação para uma análise racional e criteriosa sobre as conseqüências que esta alternativa faz surgir na eficiência da administração da justiça, e conseqüentemente, operar-se uma reforma processual com este escopo.

O primeiro passo das reformas processuais penais na América latina começou na década de 80 quando se fortaleceu institucionalmente o Ministério Público dando-lhe autonomia e independência, protegendo o órgão de ingerências políticas. Atualmente o mesmo passo alcançou a Polícia Judiciária com a edição da lei 12.830/13 e a criação do Delegado Natural.

No entanto, segundo o autor, não é somente a autonomia e independência que o faz autônomo de verdade, mas sim a forma de desenvolver suas funções numa conjuntura estrutural mais ampla, como a possibilidade de atuar de forma dinâmica na política criminal de acordo com as garantias constitucionais de o respeito aos direitos humanos.

A resposta penal não se dá de forma simplória e simbólica, inflacionando o sistema com criação de sanções criminais. Esta resposta clássica de emergência não é mais eficiente, o que nos remonta a análise de mudança estrutural.

A necessidade de mudança na persecução penal se dá na razão de serem as normas que regulam a investigação criminal e a ação penal as grandes reguladoras do poder, sendo assim, deveriam ser as que mais claramente reflitam os postulados de uma política criminal democrática.

O autor, citando Alberto Binder, leciona que “a intensidade de uma reforma processual penal se mede pela intensidade das modificações ou inovações quanto ao regime da ação penal.”, consequentemente da investigação criminal também.

A crise do sistema processual penal a respeito do regime jurídico das ações penais perde o sentido ideológico com o surgimento das teorias utilitárias do processo, bem como na crença de que o princípio da legalidade garantiria a igualdade perante a lei, ou seja, uma igualdade entre o Estado e a vítima do crime como pólo mais fraco do sistema. A obrigatoriedade criaria uma proteção para a vítima como sujeito vulnerável da relação criminoso e vítima, surgindo o Estado como marco protetor.

No entanto, diante a impossibilidade material de se investigar todos os delitos o que ocorre na realidade é uma seleção natural que em nada se aproxima de um ideal democrático, retirando a obrigatoriedade da ação penal, toda a possibilidade dos órgãos responsáveis pela persecução penal de se estabelecer um critério de política criminal democrático. A disponibilidade da investigação criminal e da ação penal poderia corrigir esses defeitos que a legalidade vem trazendo ao sistema.

Neste sentido, citando Francesco Carrara, “…a insensata idéia de que o direito punitivo deve extirpar da terra todos os delitos, leva à ciência penal à idolatria do terror, e ao povo à fé no carrasco…”

Segundo a criminologia crítica a seletividade punitiva leva a punir-se as pessoas que fazem parte de uma classe social mais pobre e não se atinge os mais poderosos pertencentes às classes mais altas sem levar em consideração para a persecução penal os reflexos danosos de suas condutas.

Assim, delitos como os de colarinho branco e praticados por organizações criminosas, que são praticados por pessoas de classe social mais rica possui reflexos danosos a sociedade, no entanto, diante de sua sofisticação e dificuldade material de se investigá-lo, os crimes menos sofisticados, praticados por classes menos favorecidas, são mais facilmente escolhidos e, consequentemente, se punindo muito mais, apenas uma camada social, a pobre.

Este sistema de inoperância e punir todo o tipo de delito e selecionando-se naturalmente os mais pobres denomina-se citando José Nores Cafferata, um sistema de “priorização inversa”, alocando-se os recursos nos delitos “bagatelarios” (insignificantes) ao invés de empenhar-se esforços nos delitos praticados pelas organizações criminosas.

Por fim, esta mudança na sistemática no princípio da obrigatoriedade para oportunidade deve ser visto como reflexo de um “´sinceramiento´ del sistema ante um conflicto que ahora empieza a tener um principio de solución.” Ou seja, uma forma racional e pragmática, distante da demagogia e hipocrisia do sistema antigo, permitindo-se de fato a persecução criminal pela Polícia Judiciária e a ação penal pelo Ministério Público de forma séria e comprometida, principalmente do cone sul das Américas.

* Ruchester Marreiros Barbosa é doutorando em Direitos Humanos pela UNLZ (Argentina). Professor de Direito Penal e Processo Penal. Membro da Leap Brasil. Delegado de Polícia Civil (RJ).

Fonte: Canal Ciências Criminais

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