Relaxamento de prisão feita pelo Delegado de Polícia
Por Fabricio De Santis*
Muito se discute se o delegado de polícia tem o ‘poder’ de relaxar a prisão, ele próprio, quando constatada a ilegalidade da medida constritiva no momento da lavratura do auto.
Casos assim ocorrem, na maioria das vezes, quando policiais militares ou rodoviários estaduais/federais conduzem suspeitos de práticas criminosas até a sede da unidade de polícia judiciária e, logo no início ou durante a lavratura do auto de prisão em flagrante, o delegado visualiza, diante das oitivas colhidas ou através de outras pesquisas tomadas, que não existem indícios razoáveis e suficientes de autoria, ou que o fato que inicialmente se projetou como verdadeiro já não mais possui adequação típica-legal, ou relevância penal em face dos dados obtidos.
Daí surge as duvidas: deveria o delegado dar prosseguimento ao Auto de Prisão em fFagrante, e mesmo assim despachar pelo encaminhamento do suspeito ao presídio local, e ato contínuo comunicar a prisão ao juiz da comarca e “lavar as mãos”, como muitos entendem o correto? Ou deveria o delegado, agindo como primeiro filtro de legalidade existente, despachar pelo relaxamento do auto de prisão em flagrante, colocando-se o suspeito em liberdade, após sua devida qualificação, baixando portaria de instauração de inquérito a fim de se garantir, em favor do investigado, o seu direito de presunção de inocência?
Respondemos “sim” ao segundo questionamento. Pode e deve o delegado de polícia, em casos desta estirpe, despachar nos autos do flagrante pelo seu relaxamento, declarando sua nulidade e conseqüente encaminhamento das ‘peças de informação’ constantes do inquérito instaurado ao judiciário, para que o membro do “parquet” opine sobre seu arquivamento, ou que requeira ao juízo o retorno do processado à autoridade policial para que essa efetue as “diligências imprescindíveis ao oferecimento da denúncia”.
Pode também o delegado declarar a nulidade do próprio inquérito policial, pois este é procedimento pré-processual de índole administrativa, elaborado pela polícia judiciária, que visa esclarecer todas as circunstancias de um fato que “pode” ser criminoso, com apuração da provável autoria e coleta de provas definitivas, servindo de base para que o “parquet” promova a acusação em juízo.
Nulidade é, pois, o reconhecimento pelo Direito de que um ato não produz efeitos jurídicos.
Assim, sendo o inquérito presidido pelo delegado de polícia, este pode entender, por exemplo, que as provas cautelares colhidas foram maculadas pela ilegalidade (p. ex., interceptação telefônica requerida em juízo e operacionalizada por policial militar, resultando na prisão de suspeito e sua condução à delegacia), ou pela ilegitimidade (p. ex., busca e apreensão requerida e executada por policial militar, os quais encontram droga ou arma proibida no interior da residência).
A jurisprudência dominante, inclusive (de forma equivocada, a nosso ver), entende que os vícios do inquérito não atingem a eventual ação penal interposta, conforme se depreende abaixo:
“INQUÉRITO POLICIAL. VÍCIOS. “Eventuais vícios concernentes ao inquérito policial não têm o condão de infirmar a validade jurídica do subseqüente processo penal condenatório. As nulidades processuais concernem, tão somente, aos defeitos de ordem jurídica que afetam os atos praticados ao longo da ação penal condenatória” (STF, 1ª Turma, rel. Min. Celso de Mello. DJU, 04/10/1996, p. 37100)”.
Ora, é sabido que em 99% dos casos a ação penal é proposta com base nas investigações feitas pelo delegado, as quais são formalizadas por meio do inquérito policial. Então como se mostraria possível afirmar que sua nulidade não contaminaria, sequer em parte, a eventual ação penal interposta?
Poderíamos aceitar a tese de que a nulidade do inquérito não resultaria na invalidade do processo, em regra. Ai sim seria cabível tal afirmação, pois existem exceções, como, por exemplo, a invalidade declarada judicialmente das provas irrepetíveis colhidas pelo delegado no inquérito, já que, sendo impossível sua nova realização ante o desaparecimento dos vestígios, se mostra lógico que tal declaração de nulidade contaminará eventual ação penal em trâmite, especialmente se for à única prova que sustente a acusação formal.
Mesmo assim, não é cabível ao delegado tomar a iniciativa de ele próprio efetuar o arquivamento dos autos do inquérito, por expressa vedação legal, cabendo apenas ao judiciário tal medida, após requerimento feito pelo órgão do Ministério Público.
De outro modo, nada impede que o delegado arquive ‘boletins de ocorrência’ produzidos na delegacia, pois tais são lavrados em função de comunicação de fatos, em tese, criminosos, cabendo a autoridade policial averiguar sua existência, tipicidade penal, bem como se há ofensa relevante à bens jurídicos e interesses protegidos dignos de apuração na esfera penal.
Inclusive, o doutrinador Guilherme Nucci, em sua obra MANUAL DE PROCESSO PENAL E EXECUÇÃO PENAL, 3ª Ed., pág. 553, trás hipótese do delegado de polícia efetuar o relaxamento do Auto de Prisão em Flagrante elaborado, no seguinte sentido:
“ …o delegado quando se inteira do que houve e acreditando haver hipótese de flagrância, inicia a lavratura do auto. Excepcionalmente, no entanto, pode ocorrer a situação descrita no §1º do Art. 304, isto é, conforme o auto de prisão em flagrante desenvolve-se, com a colheita formal dos depoimentos, observa a autoridade policial que a pessoa presa não é, aparentemente, culpada”.
Cita ainda, em sua obra, Maurício Henrique Guimarães Pereira, o qual explica que:
“ o Delegado de Polícia pode e deve relaxar a prisão em flagrante, com fulcro no art. 304, §1º, interpretado a “contrario sensu”, correspondente ao primeiro contraste de legalidade obrigatório, quando não estiverem presentes algumas condições somente passíveis de verificação ao final da formalização do auto, como, por exemplo, o convencimento, pela prova testemunhal colhida, de que o preso não é o autor do delito, ou, ainda, quando chega à conclusão que o fato é atípico (Habeas Corpus e polícia judiciária, p. 233-234)” – grifo nosso (grifo nosso).
Roberto Delmanto Júnior, citando Câmara Leal, menciona que “se as provas forem falhas, não justificando fundada suspeita de culpabilidade, a autoridade, depois da lavratura do auto de prisão em flagrante, fará por o preso em liberdade (As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração, p. 121).
Em verdade, a decisão pela lavratura do flagrante pelo delegado de polícia apresenta certo grau de discricionariedade, logicamente dentro de limites vinculados em lei. Senão vejamos o que diz a coleção de jurisprudência a respeito:
TACRSP: “(…) Inocorre o delito do art. 319 do CP, na conduta de Delegado de Polícia que deixou de lavrar auto de prisão em flagrante de acusado que nessa situação se encontrava, iniciando somente o Inquérito Policial, pois a regra da lavratura do auto de prisão em flagrante em situações que o exijam, não é rígida, sendo possível certa discricionariedade no ato da Autoridade Policial, que pode deixar de fazê-lo em conformidade com as circunstâncias que envolvem cada caso” (RDJTACRIM 51/193).
TACRSP: “Para a configuração do crime previsto no art. 319 do CP é indispensável que o ato retardado ou omitido se revele contra disposição expressa de lei, inexistindo norma que obrigue o Delegado de Polícia autuar em flagrante todo cidadão apresentado como autor de ilícito penal, considerando seu poder discricionário, não há se falar em prevaricação” (RT 728/540) – (grifo nosso).
TACRSP: “A autoridade policial goza de poder discricionário de avaliar se efetivamente está diante de notícia procedente, ainda que em tese e que avaliados perfunctoriamente os dados de que dispõe, não operando como mero agente de protocolo, que ordena, sem avaliação alguma, flagrantes e boletins indiscriminadamente (RJTACRIM 39/341) – (grifo nosso).
TACRSP: “Compete privativamente ao delegado de polícia discernir, dentre todas as versões que lhe sejam oferecidas por testemunhas ou envolvidos em ocorrência de conflito, qual a mais verossímil e, então, decidir contra quem adotar as providências de instauração de inquérito ou atuação em flagrante. Somente pode ser acusado de se deixar levar por sentimentos pessoais quando a verdade transparecer cristalina em favor do autuado ou indiciado e, ao mesmo tempo, em desfavor daquele que possa ter razões para ser beneficiado pelos sentimentos pessoais da autoridade (RT 622/296-7). No mesmo sentido, TACRSP: RT 679/351, JTACRIM 91/192.
Destarte, se a Autoridade Policial tem esse rosário jurisprudencial expelido em favor de suas atribuições para discernir sobre o caso concreto e aplicá-lo, do mesmo modo tal agente público apenas não pode estabelecer seu múnus in casu de forma incontinenti.
E já que parte da doutrina divulga que o inquérito policial é uma “mera peça informativa” (que ninguém gostaria de ter contra si instaurada, diga-se de passagem!), o que se dirá dos boletins de ocorrência policiais militares ou rodoviários federais/estaduais, posto que apenas apresentam cunho estatístico e de controle daqueles referidos órgãos, tanto que não existe previsão legal no ordenamento jurídico pátrio a respeito dos mesmos. Não há lei processual penal que os disciplinem.
Ante o exposto, concluimos que o delegado de polícia não está, sequer em tese, vinculado à classificação delitiva aportada em tais boletins de ocorrência pelos policiais militares, ou rodoviários estaduais ou federais, podendo perfeitamente, dessa forma, arquivá-los se entender inconsistentes, bem como promover o relaxamento da prisão do(s) suspeito(s) que o(s) acompanhe(m), mediante despacho devidamente fundamentado e conforme seu entendimento jurídico.
* Fabricio De Santis Conceição é Delegado de Polícia, especialista em Direito Penal e Tribunal do Júri, ex-Gerente de Inteligência da Secretaria de Segurança da Paraíba, professor universitário e de cursos preparatórios e vice-presidente da Adepol/PB.
Fonte: Site Delegados.com