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Polícia é para quem precisa: a ética do cinismo

Por Alexandre Costa*
A filosofia e os estudos da linguagem são irmãos gêmeos de pais antagônicos. Questões como conhecimento, ética e verdade dependem do modo de construir o discurso. Os problemas e as soluções derivados desse ‘entrevero’ são seculares e já passaram pelas mãos de gênios de todas as épocas. Não há resolução, de fato, nem simples nem definitiva, mas há, com certeza, lugares de evidência que são ignorados pela nossa conveniência cotidiana.
Um grande filósofo da linguagem dizia que a citação das fontes era uma bobagem, pois, para quem conhecia o tema, sua origem era óbvia e, para quem não sabia do assunto, era inútil indicar a autoria. Por pura provocação farei o mesmo aqui, ainda que discorde dele. E o farei porque, atualmente, muitos pensadores têm discutido questões fundamentais com base apenas em argumentos de autoridade: a sua mesma ou a dos autores citados. Parece que voltamos à Idade Média, quando algo era considerado verdadeiro porque Aristóteles o havia afirmado, por exemplo.
Houve quem, ao discutir a noção de ‘verdade’, reconhecesse uma cisão entre Hesíodo e Platão: a verdade mais elevada já não residia no que era o discurso, ou no que ele fazia, mas no que ele dizia: surgia a separação entre o verdadeiro e o falso. O discurso verdadeiro não dependeria mais de quem o dissesse, ou do ritual do dizer, mas de uma série de modos de controle e de verificação da forma e do conteúdo do dito. Desde a lógica até a possibilidade de verificação de uma experiência, da comprovação das fontes até a acareação policial, a vontade de verdade espalhou-se por todos os lugares, meios e mentes.
Nas universidades, nos tribunais, nos lugares do poder, enfim, esse paradigma de regulamentação da vida social parece ter se transformado em um jogo, no qual mais vale o espetáculo e o truque do que a consequência concreta. Infelizmente, o discurso e a verdade estão a serviço da manutenção dos privilégios de quem os elabora e os repete ad infinitum. Mas, como era de se esperar, outros atores sociais não têm esse recurso. São os pais, os professores, os médicos, os policiais e tantos mais.
Os sofismas de muitos dirigentes do País não servem à maioria dos brasileiros. Você ama seu filho e precisa cuidar dele, educá-lo; se falhar, não haverá retorno. Você leciona a seus alunos, e o tempo dirá se você era um professor mesmo ou apenas vendia aulas para sobreviver. Você trata de seus pacientes e, saibam eles ou não, suas ações tomarão corpo no corpo de quem lhe confiou a vida.
No entanto, dentre todos esses exemplos, talvez o do policial seja o mais gritante. Após anos de ditaduras e apesar do recente período de democracia, ainda demonizamos a polícia. Disse-me uma amiga que sua sobrinha de sete anos afirmara certa vez que um policial era uma espécie de bandido, só que tinha que usar uniforme. É evidente o significado da concepção desta criança: isso é senso comum.
A polícia, como se sabe, é um “braço armado do Estado” e tem o direito de “exercer a violência” em nome da ordem pública. Sabe-se também que a polícia comete erros, excessos e se corrompe, assim como todos os outros segmentos da sociedade. O que chama a atenção é que a polícia, por ter o direito ao exercício da violência, parece ser depositária do horror que a violência praticada por todo lado provoca nas pessoas.
Este caso é importante porque aqui começa o que chamo de “ética do cinismo”. Falamos mal da polícia, mas é a ela que recorremos quando se faz necessário. Sabemos que os policiais têm muito menos armamento que o crime organizado; sabemos que uma parte importante da população com mais recursos anda armada e aterroriza vizinhos, motoristas e desafetos.
Sabemos que o policial tem suas ações completamente reguladas e, por isso, está sempre em desvantagem em qualquer enfrentamento; sabemos que os policiais corretos precisam temer e combater inclusive os colegas que optarem por unir-se ao crime. Sabemos de tudo isso, mas, cinicamente, exigimos uma polícia perfeita, assim como esperamos perfeição de professores e profissionais da saúde, sejam quais forem suas condições de trabalho.
As ações policiais estão assentadas em uma vontade de verdade de ordem legal; mas é na ação, no cotidiano da rua e da violência que essa “verdade” se faz: na vida, contra a vida e a favor da vida. A ética é da ordem do “acontecimento”. Os “agentes da lei” têm muitos inimigos, a começar por seus pares “desviados”. Estes são seguidos por toda sorte de oportunistas cínicos: pseudoliberais, pseudocomunistas, pseudodefensores dos direitos humanos, muita gente que vive à custa do discurso politicamente correto.
Precisamos ser mais honestos. Ninguém é a favor do aborto, mas da saúde da mulher; ninguém é a favor da violência, mas da regulação dos meios de segurança. Bom senso e “vergonha na cara”, penso eu, são um bom começo para essa discussão. Em bom português, chega dessa conversa fiada do pelotão de charlatões que não têm envolvimento com nada do que discutem e sempre repetem slogans enfadonhos que servem para qualquer debate. Se você não sabe reconhecê-los, se não está farto dessa lengalenga, me permita, por favor, a sinceridade: você é um deles.

*Alexandre Costa é professor da Faculdade de Letras da UFG e doutor em Linguística pela Unicamp

Fonte: Jornal O Popular

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