Origens e Evolução Histórica do Cardo de Delegado de Polícia no Brasil
Por Franco Perazzoni*
A doutrina é uníssona em afirmar que o direito brasileiro, escudado inicialmente nas Ordenações vigentes na metrópole e, posteriormente, a partir da edição de normas pátrias, sempre previu alguma forma de investigação preliminar, sendo corrente a menção aos institutos da devassa e a querela, como as formas de investigação vigentes durante o Brasil – colônia.
A devassa era uma investigação ordinária, sem preliminar indicação de autoria ou de indícios de autoria delituosa, ao passo que a querela era uma investigação sumária, ou seja, com prévia indicação de autoria ou seus indícios (ALMEIDA, 1973, p. 195-197), estando ambas a cargo do próprio juiz que julgaria o feito, ou seja: as funções judicantes e de investigação criminal, nesse período, estavam todas concentradas na pessoa do magistrado.
Além disso, importante termos em mente que, durante o Brasil-colônia, apesar de terem surgido alguns grupos organizados com funções de polícia ostensiva (guarda escocesa, quadrilheiros etc.), não havia, efetivamente, um corpo policial com funções especificamente investigativas, ainda que submetido ao comando do magistrado.
Neste sentido são as lições de Kfoury Filho (apud ZACCARIOTTO, p.53):
[…] por longo tempo as atividades jurídico-policiais, a par daquelas de índole político-administrativas, incumbiram às Câmaras Municipais, cabendo aos capitães-mores, aos alcaides, aos quadrilheiros e aos almotacés auxiliar os Juízes Ordinários e de Fora, além dos Corregedores e Ouvidores, na faina criminal.
Apenas posteriormente, em 1808, com a chegada da Corte portuguesa no Brasil, foi criada a Intendência Geral de Polícia, cuja chefia era desempenhada por um desembargador, nomeado Intendente Geral de Polícia, com status de ministro de Estado.
Dadas às peculiaridades e extensão do território nacional, o intendente podia autorizar outra pessoa a representá-lo nas províncias, surgindo desta atribuição o uso do termo “delegado” no Brasil.
Este “delegado” exercia, contemporaneamente, funções típicas de autoridade policial (tanto administrativa como investigativa) e judiciais.
Pouco após nossa independência, já em 1827, foi implementada sensível alteração no sistema de persecução penal que, nos dizeres de Maria da Gloria Bonelli (2003, p. 6-7):
[…] introduziu o juiz de paz previsto na Constituição de 1824, com atribuição policial e judiciária, e extinguiu os delegados de polícia. A principal diferença entre os delegados de polícia e os juízes de paz vinha da origem da autoridade judicial. Enquanto a autoridade do intendente e do comissário emanava do monarca, a do juiz de paz vinha da eleição na localidade.
A idéia, como é fácil perceber, era afastar o poder central da investigação e apuração de ilícitos penais.
Ocorre, entretanto, que tal qual o modelo anterior, este sistema ainda pecava por conferir à mesma pessoa poderes típicos de autoridade policial e judiciária, o que, aliás, foi mantido pelo novel Código de Processo Criminal, promulgado em 29 de novembro de 1832 .
Esta descentralização política na função policial, pós-Independência, perdurou até a reforma processual de 1841, quando:
A Lei 261, de 03 de dezembro, determinou que os chefes de polícia seriam escolhidos entre os desembargadores e juízes de direito, e que os delegados e os subdelegados podiam ser nomeados entre juízes e demais cidadãos, tendo autoridade para julgar e punir. A lei estabeleceu as funções de polícia administrativa e de polícia judiciária. Na primeira, os delegados assumiam atribuições da Câmara Municipal, como as de higiene, assistência pública e viação pública, além daquelas de prevenção do crime e manutenção da ordem. Na função judicante, podiam conceder mandados de busca e apreensão, proceder a corpo de delito, julgar crimes com penas até seis meses e multa até cem mil-réis. O regulamento de julho de 1842, instituiu o controle civil sobre a polícia militar, que foi reforçado pelo regulamento de janeiro de 1858 (HOLLOWAY, 1997, p. 170).
É, portanto, a partir da Lei 261 de 03.12.1841, que o ordenamento pátrio passa a prever, expressamente, os poderes e atribuições legais das Autoridades Policiais, as quais deveriam ser nomeadas dentre Juízes e cidadãos respeitáveis, bem como passa adotar, oficialmente, as denominações Chefe de Polícia, Delegado de Polícia e Subdelegado de Polícia.
Posteriormente, o regulamento 120/1842 veio a estabelecer a distinção formal entre Polícia Administrativa e Polícia Judiciária, prevendo dentre as funções desta última prender denunciados, expedir mandados de busca e apreensão, proceder ao corpo de delito e julgar crimes de sua alçada (MACHADO, 2010 p. 50).
Neste sentido, convém trazer à baila o precioso escólio do Prof. José Pedro Zaccariotto:
À polícia judiciária de então, quase sempre exercida por magistrados togados, competia mais que a apuração das infrações penais (função criminal), cabendo-lhe também o processo e o julgamento dos chamados “crimes de polícia” (função correcional) […] Falhou a reforma, destarte, precisamente por não realizar a separação, já há tempo veementemente reclamada, entre as funções judiciais e policiais (executivas), que continuaram em mãos únicas […] Quase três decênios de protestos e inúmeros projetos legislativos foram necessários para reverter os excessos perpetrados por meio das mudanças em comento […] (ZACCARIOTTO, 2005, p. 60-61).
Com efeito, apenas com o advento da Lei n. 2.033, de 20 de setembro de 1871 e do conseqüente Decreto n. 4.824, de 22 de novembro de 1871, é que se concretizou a eficaz separação entre funções judiciais e policiais, vedando-se às autoridades policiais o julgamento de quaisquer ilícitos penais, e consagrando-se, no ordenamento pátrio, o inquérito policial como principal modelo legal de apuração de fatos criminosos.
Note-se que, com a proclamação da república em 1889 e promulgada a novel Constituição Federalista de 1891, a criação e manutenção das forças policiais passou a ser responsabilidade dos estados-membros.
As linhas gerais do modelo definido em 1871, entretanto, foram mantidas até a presente data, inclusive com a manutenção da autoridade policial (concentrada na tradicional figura dos Delegados de Polícia ), assim como do inquérito policial na posterior reforma do Código Penal, em 1941 (arts. 4º a 23 do Decreto Lei 3.689, de 03.10.1941).
Por óbvio e tendo em mente que o Código de Processo Penal vigente foi editado em pleno regime ditatorial, “no qual se defendia a eficiência da persecução criminal a todo custo e o imputado era tratado como mero objeto da investigação” (MACHADO, 2010, p. 52), faz-se necessária toda uma nova releitura não apenas da sistemática que envolve a persecutio criminis extra juditio, especialmente o inquérito policial, mas, sobretudo, o papel que desempenha o Delegado de Polícia a partir da Constituição de 1988, de inspiração flagrantemente garantista.
Em que pese a já longa escalada histórica da Polícia Judiciária e do Delegado de Polícia em nosso ordenamento, o que se verifica é que a referida autoridade, suas funções e a posição que ocupa no sistema jurídico-penal brasileiro são ainda pouco conhecidas e difundidas, não apenas ao público em geral, mas mesmo no meio jurídico e policial.
A falta de conhecimento acerca dos diferentes sistemas de investigação preliminar vigentes no mundo, bem como do papel desempenhado pela Polícia Judiciária em cada um desses distintos modelos, faz com que, naturalmente, o delegado de polícia seja simplesmente visto como o dirigente de uma unidade policial, um equivalente ao “xerife” norte-americano, ou aos comissários e inspetores de polícia judiciária de alguns países europeus, a exemplo da Itália.
Tal concepção é deveras equivocada e não corresponde, sequer em parte, ao verdadeiro e importante papel que desempenha o ocupante do cargo de delegado de polícia, na condição de autoridade policial, no ordenamento pátrio.
Ao delegado de polícia, como titular do Estado-investigação, incumbe tripla função: a) proteger os bens jurídicos mais importantes e ameaçados pela conduta humana; b) apurar as supostas práticas delituosas que lhe cheguem a conhecimento com zelo, imparcialidade e em estrita consonância com os ditames de um sistema processual de partes, portanto democrático e marcadamente acusatório e; c) proteger o próprio suspeito/investigado/indiciado dos excessos e arbítrios outrora cometidos pelo próprio estado, tendo em vista a sua condição de indivíduo, titular de garantias e direitos fundamentais.
Isto tudo porque a investigação criminal possui duas faces, que apesar de aparentemente opostas, se afiguram indispensáveis no Estado Democrático de Direito: tutelar os bens jurídicos mais importantes e ameaçados pela conduta humana, sem, contudo, deixar de proteger o próprio investigado dos excessos e arbítrios outrora cometidos pelo próprio estado, em total desrespeito à sua condição de pessoa humana e, como tal, titular de garantias e direitos inatos e de caráter inalienável.
Nesse sentido, aliás, indefectíveis os seguintes ensinamentos:
[…] os direitos fundamentais são os lindes jurídicos da investigação criminal. Embora a lei não diga o que fazer na investigação criminal, estabelecendo o caminho necessário de pesquisa do crime (um método positivo), acaba o delimitando sob certos aspectos na medida em que estabelece limites legais que dizem o que não se pode fazer (um método negativo), ou o que se pode fazer sob certas condições, tendo por balizas os direitos fundamentais (PEREIRA, 2011, p.289).
Com efeito, historicamente, e por força dos normativos vigentes, ao delegado de polícia incumbem tarefas que, nesses países, via de regra, recaem sobre autoridades judiciárias ou ministeriais.
Tal constatação, aliás, não se restringe única e exclusivamente à condução da investigação criminal (nesses países atribuída ao respectivo juiz-instrutor ou promotor-investigador), mas também, uma gama enorme de atividades desempenhadas pelo delegado de polícia que, por vezes, sequer nos apercebemos quanto ao seu conteúdo eminentemente jurídico, mas que, o tempo todo, lhe exigem a ponderação de bens, direitos e interesses no caso concreto, na esmagadora maioria das vezes, ainda no calor dos fatos.
O delegado de polícia, no Brasil, não pode nem deve ser visto como o simples chefe de uma unidade policial, a agir por determinação do verdadeiro titular da investigação criminal, como se afigura na esmagadora maioria das instituições policiais no mundo, mas sim, como o próprio titular do Estado-investigação, exercendo, aqui, funções, que em todos os demais países, são exercidas por magistrados e membros do ministério público, daí, aliás, lhe ser deferido tratamento isonômico com referidas carreiras, nos termos do art. 3º da Lei 12.830/13.
A exigência de formação jurídica do delegado de polícia, por seu turno, se afigura não apenas em estrita consonância com uma investigação garantista e imparcial, mas, sobretudo, com os modelos investigativos adotados no mundo moderno e com a tradição do direito brasileiro pois, nos países que adotam tradição jurídica semelhante, as investigações, historicamente, são dirigidas e coordenadas por magistrados (juízo de instrução) ou membros do ministério público (promotor-investigador).
Não à toa, portanto, o Ministro Celso de Mello ter se referido, recentemente, ao delegado de polícia como “o primeiro garantidor da legalidade e Justiça”.
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*ARTIGO ADAPTADO DO TRECHO DO LIVRO: “INVESTIGAÇÃO CRIMINAL CONDUZIDA POR DELEGADO DE POLÍCIA: COMENTÁRIOS À lei 12.830/13” (PERAZZONI, Franco. Comentários ao art. 3º da Lei 12.830/13. In: Investigação Criminal Conduzida por Delegado de Polícia – Comentários à Lei 12.830/2013. Curitiba: Juruá. 2013. pp. 217-266).