Onde os estranhos se encontram
Por Rosângela Chaves*
No livro Modernidade Líquida , o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, ao propor uma reflexão sobre a vida urbana no mundo contemporâneo, faz referência a uma curiosa definição do também sociólogo norte-americano Richard Sennett sobre o termo “cidade”. Uma cidade, diz Sennett, é “um assentamento humano em que estranhos têm chances de se encontrar”. O que impede que esses encontros ocorram sem atritos – e que se possa, por um momento fugaz, desfrutar da companhia de uma pessoa que depois continuará nos sendo tão estranha quanto antes – é uma habilidade especial que, como o nome indica, só pode ser empregada em público, num espaço civil. A ela, chamamos “civilidade”.
O exercício da civilidade tem dupla função: além de permitir, como já mencionado, que estranhos possam interagir entre si e compartilhar o mesmo espaço, também protege as pessoas umas das outras. Nesse último aspecto, essa proteção ocorre porque, nesses instantes de prática de civilidade, só se requer que mostremos as nossas máscaras públicas. Nessas breves relações em que exercitamos a sociabilidade, o nosso assim chamado “verdadeiro eu” não precisa se manifestar, porque nelas não somos obrigados a expor a nossa intimidade, a escancarar os nossos dramas e nossas alegrias privados, e tampouco precisamos suportar os sentimentos alheios nem constranger os outros com detalhes de nossas vidas particulares. “A civilidade tem como objetivo proteger os outros de serem sobrecarregados com nosso peso”, afirma Richard Sennett.
A civilidade, no entanto, vai além da “proteção do eu”, e o fato de requerer o uso de “máscaras públicas” não a transforma em sinônimo de falsidade ou dissimulação. Na verdade, o que a civilidade procura ressaltar é a nossa qualidade de “cidadãos” e não nossa faceta de indivíduos isolados, imersos nos próprios problemas. Dessa forma, “vestir uma máscara pública”, como sentencia Bauman, “é um ato de engajamento e participação”, um gesto de despreendimento que coloca os interesses da coletividade acima daqueles que são particulares.
Como é uma virtude relacionada ao público e não ao privado, praticada por pessoas que tenham a compreensão de que compartilham algo em comum, não é de se estranhar que a civilidade ande em baixa nas grandes cidades brasileiras. Para começar do trânsito, cada vez mais nos centros urbanos as pessoas agem como se disputassem terreno e não como se partilhassem um espaço público. As cidades vão deixando de ser, dessa forma, o local de convívio dos cidadãos para se converter no território em que circula, nem sempre de forma pacífica, um enorme aglomerado de indivíduos que pouco se importam com o coletivo.
Sem as artes da civilidade, os centros urbanos, lugares onde “os estranhos se encontram”, estão condenados a se transformar em zonas permanentes de conflito.
Este será o nosso triste destino?
*Rosângela Chaves é jornalista, editora do Magazine – [email protected]
Fonte: Jornal O Popular