O amadorismo na investigação criminal cobra seu preço no jogo processual
Por Leonardo Marcondes Machado*
Não só o processo penal como a própria investigação preliminar pode ser estudada a partir da teoria dos jogos (conforme, por todos, Alexandre Morais da Rosa[1]). A importância desse tipo de análise, que não se confunde com o puro dogmatismo tampouco com qualquer iniciativa de estandardização jurídica, tem sido cada vez mais percebida pelos atores do sistema de Justiça criminal.
Compreender o lugar da investigação preliminar como pré-jogo processual e a posição ocupada pelos sujeitos obrigatórios ou facultativos nesse contexto, como o investigador, o investigado, a vítima e o fiscal, faz absoluta diferença no jogo principal (o processo penal).
De fato, não se pode subestimar a importância das preliminares. Cada vez mais têm ficado evidente, na sistemática dos jogos, os efeitos determinantes da partida prévia sobre o jogo principal. A investigação preliminar, por muito tempo relegada a segundo plano pela doutrina e pelos atores processuais, funciona, em muitos casos, como verdadeiro local de resultado. O placar (antecipado) tem sido constantemente definido na investigação, apesar de toda a válida crítica doutrinária a esse respeito.
Por isso, cada vez mais necessário pensar em táticas de defesa e ataque no jogo investigatório, sob pena de inviabilizar por completo certas estratégias processuais. Aos que insistem em menosprezar a repercussão do pré-jogo e, portanto, nem sequer atuam nele ou não se preparam adequadamente para a dinâmica da investigação, pouca coisa lhes restará no processo; será, de fato, como afirma o senso comum, “correr atrás do prejuízo”. Sim, do prejuízo mesmo; o que não parece valer a pena. Insistir na equipe reserva ou apostar em lances de sorte para o campo da investigação preliminar constitui verdadeira postura suicida. A única certeza dessa gente será a do início da partida principal com um placar muito desfavorável, normalmente bastante difícil de reverter. O amadorismo, por óbvio, cobrará o seu preço; diga-se, de passagem, um alto preço, já que estamos a falar não raras vezes da perda da liberdade de um sujeito.
É preciso reconhecer, de antemão, que no atual sistema brasileiro de investigação o Ministério Público ainda desfruta de uma posição muito confortável e privilegiada, nitidamente desigual em relação à defesa. Além da prerrogativa constitucional de requisitar a instauração de inquéritos policiais, poderá conduzir diretamente investigações criminais na visão do Supremo Tribunal Federal. Isso sem falar na sua interferência direta nas apurações policiais (termos circunstanciados e inquéritos policiais) mediante o exercício do poder requisitório de diligências complementares e imprescindíveis para a análise da justa causa (artigo 16 do CPP) bem como nas suas diversas medidas adotadas em nome do controle da atividade policial (artigo 129, VII, da CRFB).
Enfim, o leque de possibilidades quanto aos papéis que podem ser ocupados pelo MP nesta etapa preliminar de um caso penal — noticiante obrigatório, investigador, destinatário direto ou indireto, fiscal (ou controller), terceiro interveniente etc. — dificulta consideravelmente o exercício do direito de defesa. Isso porque nem sempre é possível antever qual será o lugar ocupado pelo Ministério Público em face de certa notícia crime tampouco se manterá a mesma posição ao longo de toda a fase de apuração preliminar. À defesa, entretanto, caberá desenvolver o seu plano estratégico consciente dessas possíveis mutações ministeriais; pretender simplesmente ignorar essa realidade desigual, quando não possível superá-la de forma legítima, não nos parece uma atitude inteligente e eficaz.
É bem verdade que a defesa ganhou novos mecanismos formais de atuação com a edição da Lei 13.245/16, a qual pode funcionar como importante instrumento de resistência a eventuais manobras fraudulentas durante o pré-jogo processual. Embora não tenha transformado a etapa investigatória preliminar em procedimento com contraditório pleno e ampla defesa, inegável o avanço democrático no sentido do fair play na investigação criminal, principalmente no campo das nulidades e das responsabilizações por doping do investigador.
No tocante ao direito fundamental do advogado de acessar os autos de investigação criminal, perante a polícia judiciária ou o Ministério Público, já consagrado na redação original do Estatuto da Advocacia (artigo 7 da Lei 8.906/94) e reafirmado pelo STF (Súmula Vinculante 14), tem-se agora novos contornos, possibilitando inclusive a “responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável que impedir o acesso do advogado com o intuito de prejudicar o exercício da defesa, sem prejuízo do direito subjetivo do advogado de requerer acesso aos autos ao juiz competente”. Trata-se de típica medida para a contenção do chamado “jogo sujo” contra o direito de defesa na investigação criminal, muito comum pelo “fornecimento incompleto de autos ou o fornecimento de autos em que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo”. Todas essas alterações legislativas devem ser não apenas dominadas, mas plenamente efetivadas por aqueles que pretendem atuar seriamente na investigação criminal brasileira.
Outro ponto importante na perspectiva da teoria dos pré-jogos criminais reside justamente na análise prévia do sujeito investigador. É necessário conhecer o perfil e o modo de atuação da autoridade responsável pela presidência das investigações. Costuma representar por prisões temporárias ou preventivas? Trabalha com meios especiais de obtenção de prova? O que pensa de agentes encobertos? Já celebrou acordos com delatores? Admite reconhecimentos fotográficos? Qual valor atribui ao depoimento testemunhal? Alguma vez reconheceu a possibilidade de falsas memórias? Opera com medidas cautelares reais?
Todas essas e muitas outras perguntas devem ser formuladas pela defesa enquanto traça seu plano estratégico de atuação. O histórico do sujeito pode não significar uma garantia absoluta de desvelamento tampouco uma antecipação exata dos passos a serem adotados no caso concreto, mas certamente fornecerá uma boa noção do padrão de comportamento e do seu modo de trabalho. Isso sem dizer que uma pesquisa mínima a respeito da autoridade presidente das investigações pode conduzir a questionamentos sérios quanto à sua falta de isenção na espécie. Sempre lembrando, neste particular, que a velha tese do inquérito policial inquisitório como óbice para arguições de suspeição ou impedimento do investigador não encontra qualquer respaldo constitucional; uma rápida análise do próprio regramento fundante da administração pública brasileira, orientada pelos princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade (artigo 37, caput, da CRFB), seria suficiente para afastar esse posicionamento clássico autoritário que pretende negar ao investigado direito fundamental à isenção nas apurações preliminares criminais.
Enfim, muitas outras análises poderiam ser feitas sobre a complexa dinâmica do pré-jogo criminal como o lugar da vítima e do próprio investigador; o que, aliás, pretendemos explorar em outras oportunidades. Contudo, para além dessas avaliações pontuais, algo parece ficar muito claro: a importância da teoria dos jogos na etapa investigatória preliminar. Ignorar essa realidade, embora seja uma alternativa legítima para muitos, não nos parece a melhor saída. Mesmo porque, como diriam Dado Villa-Lobos e Renato Russo, mentir para si mesmo é sempre a pior mentira.
[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal. Lisboa: Rei dos Livros, 2015; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
* Leonardo Marcondes Machado é delegado da Polícia Civil em Santa Catarina, mestrando em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação.