O ABUSO DO ABUSO

A Câmara dos Deputados aprovou, em regime de urgência urgentíssima, por votação simbólica, e já está com o presidente da República para sanção, o projeto de lei que criminaliza eventuais excessos cometidos por servidores públicos, policiais, juízes, membros do Ministério Público. A proposta lista 37 novos tipos penais que configurariam “abuso de autoridade”. Entre eles, obter provas “por meios ilícitos”; executar mandado de busca e apreensão de forma “ostensiva para expor o investigado”; “constranger o preso ou detento”; proibição de decretação de prisão provisória em “manifesta desconformidade com as hipóteses legais”; “submeter o preso ao uso de algemas ou outro qualquer objeto que lhe restrinja o movimento dos membros”.
Hoje, como advogado criminalista militante, mestre em direito público, bem como na condição de delegado de polícia (aposentado) e ex-presidente do Conselho Nacional dos Chefes de Polícia do Brasil, conhecendo de cátedra os dois lados do balcão, é de se lamentar que no nosso país insistamos no erro dos excessos, dos extremismos e dos oportunismos. Nesse caso, especialmente, com certa dose de vindita contra as forças coercitivas do Estado. Sob o manto do bem público, legisla-se o mal.
Ora, a lei parece de boa índole conceitual, mas precisaria ser aprimorada para o bem da democracia. Contém muitos termos genéricos, subjetivos, sujeitos às mais diversas e elastérias interpretações hermenêuticas. Confunde a necessária punição a quem atue sob a égide do autoritarismo excessivo com o inarredável exercício inerente à autoridade e à independência dos poderes constituídos, que tanto trabalham no combate à corrupção, na garantia dos direitos fundamentais e na própria consolidação da democracia.
Como advogados, notadamente advogados criminalistas, talvez fôssemos os mais beneficiados com a nova lei. Se aprovada como está, no entanto, mesmo com o revés do nosso conforto pessoal, não podemos deixar de ponderar o prejuízo que tal legislação trará à segurança pública e à justiça penal no Brasil.
Seguramente, entre nós, advogados, não se deve tolerar abuso de qualquer pessoa revestida de autoridade pública. Porém, de igual modo, não podemos apoiar qualquer legislação que tenha o condão de obstar os agentes do Estado do cumprimento do seu múnus público, ainda que seus destinatários diretos sejam cidadãos que se consideram de uma casta superior, também chamados de “colarinhos brancos”.
Com a palavra o presidente Bolsonaro, a quem compete sancionar, vetar no todo ou em parte, tal projeto de lei. De qualquer maneira, estamos a ponto de ter que engolir uma legislação abusiva, tocada de forma abusada e que pretende conter abusos.
EDEMUNDO DIAS DE OLIVEIRA FILHO
Advogado. Presidente da Comissão de Segurança Pública e
Política Criminal da OAB/GO