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Ministério Público não é um órgão vocacionado à investigação criminal

Por Eduardo Luiz Santos Cabette e Francisco Sannini Neto

Com o advento da Constituição de 1988 o até então acanhado Ministério Público brasileiro ganhou foros de “quarto poder”, abarcando uma grande variedade de incumbências, dentre as quais, uma das mais importantes, é a de tradicional “Fiscal da Lei”.

O órgão, grandioso em termos constitucionais e legais, continuou e continua, em prejuízo da sociedade, mirrado em recursos materiais e pessoais, de modo que mal dá conta de uma mínima parcela de suas numerosas funções.

Mesmo nesse quadro, se embrenha, seja em nível estadual, seja federal, numa sanha para abarcar funções de investigação criminal. É claro que não pretendendo atender, juntamente com as Polícias Judiciárias, a toda a demanda de delitos em uma divisão equânime de trabalho, mas com a pretensão de escolher a dedo casos e criar equipes especialmente dedicada, as famosas “forças-tarefa”.

Assim sendo, à margem de mandamento constitucional expresso e sem qualquer base legal ordinária, por meio de Resolução, passa a “legislar” (sic) os famigerados PICs (Procedimentos Investigatórios Criminais do MP). Os fiscais da lei imprimem um duro golpe no seu objeto de proteção. Sem controle externo, nem mesmo do Judiciário, passam a realizar, por conta e risco próprio, investigações especiais de casos de repercussão.

A tática do “vamos fazer para ver no que dá” ou do “bumba meu boi”, resulta bem. Acontece que, com a escolha de casos específicos, com investigações com dedicação exclusiva, conseguem levar a Juízo episódios de alta repercussão social e midiática. É óbvio que as Polícias Judiciárias, atulhadas de casos de pequena monta, não poderiam competir com essa atuação seletiva. Nesse clima, quando a absoluta inconstitucionalidade e ilegalidade de sua atuação é posta em xeque perante o STF, aquele tribunal não tem a coragem de reconhecer a ilegalidade patente e acaba sanando os vícios de iniciativa, mediante uma nova usurpação legislativa (agora do Poder Judiciário) e uma violação à Constituição Federal em vários aspectos (processo legislativo, legalidade, atribuições constitucionais, divisão de poderes etc.). Enfim, o STF afirma que a investigação criminal pelo Ministério Público é legal! Aceita uma Resolução como regramento de processo penal! Acata uma suposta atribuição constitucional que não está escrita em lugar algum da Constituição! Afinal, ficaria mal decretar a nulidade absoluta de todas as investigações e processos delas decorrentes naquela altura do campeonato. O “troféu” tão desejado estava conquistado pelo Ministério Público, à custa do vilipêndio de sua própria função, esta, sim, constitucional, de Fiscal da Lei. Era agora o titular exclusivo da ação penal (titularidade esta constitucionalmente e legalmente indiscutível) e autor facultativo e seletivo de investigações criminais.

Sobre o tema, é lapidar a lição de Delmanto:

Destarte, de forma ilegal, tanto no plano constitucional (como acima referido) quanto no ordinário (por inexistir lei definindo critérios, impondo limites e permitindo amplo acesso à defesa), membros do Ministério Público têm, literalmente, “escolhido” o que, quando e quem desejam investigar, agindo, portanto, de forma arbitrária, mediante verdadeiras devassas, com abusos em razão do excesso de poder, uma vez que, se o Ministério Público fiscaliza a polícia, ninguém fiscaliza o Ministério Público.
(…) Em que pese hoje vigorar o chavão, de viés populista, de que “quanto mais órgãos públicos puderem investigar, menor a impunidade”, há que se ter muito cuidado com essa ideia. A nosso sentir, se o Ministério Púbico, como parte, pudesse investigar para ver comprovados os fatos que pretende fazer constar de sua denúncia, há sério e palpável risco de provas contrárias, favoráveis ao futuro denunciado, poderão ser preteridas, havendo um enorme desequilíbrio.[1]

Consignamos, outrossim, que esse tipo de discricionariedade (investigação seletiva) é extremamente temerária e inconcebível no campo do Direito Público. Por não contar com um respaldo legal, consideramos um absurdo jurídico as investigações realizadas pelo Ministério Público. Causa-nos espécie o fato de uma instituição que deve atuar como fiscal da lei, acabe atuando às suas margens. Com base no princípio da legalidade pública, os agentes públicos só podem fazer aquilo que está previsto na lei. Na legalidade privada, por outro lado, a pessoa comum pode fazer tudo aquilo que não for proibido por lei, prevalecendo, assim, a autonomia da vontade.

Tendo em vista que os agentes estatais não têm vontade autônoma, eles devem se restringir à lei, que, por sua vez, representa a “vontade geral”, manifestada por meio dos representantes do povo, que é o legítimo titular da coisa pública. Nesse contexto, o princípio da legalidade pública tem estrita ligação com o postulado da indisponibilidade do interesse público, que deve pautar a conduta do Estado e de todos os seus agentes. Assim, considerando que o interesse público é determinado pela lei e pela própria Constituição da República, não é suficiente a ausência de proibição em lei para que o servidor público possa agir, é necessária a existência de uma lei que autorize ou determine certa conduta.

Não bastassem esses argumentos, entendemos que um dos pontos principais que inviabiliza, sob o aspecto jurídico, a investigação de infrações penais pelo Ministério Público, está diretamente ligado à ação penal privada subsidiária da pública. Como é cediço, esta ação supletiva possui previsão constitucional (artigo 5°, inciso LIX), caracterizando-se como um direito fundamental do indivíduo, o que impossibilita sua supressão, vez que se trata de uma cláusula pétrea.

O objetivo dessa previsão constitucional foi, justamente, fornecer à vítima um instrumento contra a inércia do Ministério Público. A ação penal privada subsidiária tem cabimento sempre que o representante do Parquet deixar de se manifestar dentro do prazo legal, não promovendo a denúncia, ou, em sendo o caso, não se manifestando pelo arquivamento do inquérito policial, ou, ainda, não requisitando novas diligências à autoridade de polícia judiciária. Trata-se, na verdade, de uma forma de fiscalização do Ministério Público que evita eventuais desídias de sua parte.

Seguindo esse raciocínio, lembramos que o prazo para a propositura da denúncia começa a correr a partir do recebimento dos autos do inquérito policial pelo Ministério Público (5 dias para indiciado preso e 15 dias para indiciado solto). Se não houver qualquer manifestação dentro desse prazo, nasce o direito da vítima em propor a ação penal privada subsidiária da pública.

Nesse contexto, o inquérito policial se destaca como um instrumento indispensável na constituição de um direito fundamental: direito de propor ação privada supletiva. Isto, pois, é a partir do encerramento das investigações e recebimento dos autos pelo Parquet que poderá ser contado o prazo para a sua manifestação.

Percebe-se, pois, que se a investigação for perpetrada pelo próprio órgão Ministerial, não seria possível constatar com clareza o final do procedimento investigativo e o início da contagem do prazo para a propositura da denúncia. Nesse sentido, ficaria absolutamente ameaçado o direito fundamental da vítima em propor uma eventual ação subsidiária. Além disso, o indiciado também ficaria desprotegido, uma vez que o termo final para a manifestação do Ministério Público seria de difícil verificação, o que poderia acarretar abusos por excesso de prazo.

Sem embargo do exposto, as questões levantadas não são o foco deste texto, o qual nem sequer pretende ter ares de juridicidade ou metodologia científica rígida, mas persegue um objetivo de analisar questões estritamente de fato.[2]

Uma questão prática que vem passando ao largo do debate que envolve a investigação direta pelo Ministério Público, se relaciona ao fato de que antes de se embrenhar nessa seara, os promotores de Justiça estavam praticamente blindados do convívio direto com o submundo criminoso. Recebiam autos de inquéritos policiais concluídos e lidavam com a realidade em forma de papéis, quase nunca se envolvendo diretamente com pessoas ou circunstâncias impróprias ou duvidosas. Ocorre que nesse novo contexto, o Ministério Público, ainda que seletivamente, começava a pisar numa lama à qual seus sapatos brilhosos não estavam habituados. E é impossível aproximar-se da lama sem misturar-se aos porcos de alguma forma, ainda que aparentemente.

Entrava em risco a tão cara imagem imaculada do Ministério Público. Porque uma grande verdade é aquela que se fala sobre a aparência da “mulher de César” (“não basta ser honesto, é preciso parecer honesto”). Ora, as Polícias em geral, incluindo a Judiciária, já estão e sempre estiveram calejadas em enfrentar suspeitas sobre suas ações e inações, de andar no fio da navalha entre o abuso e a prevaricação, de aguentar, com paciência infinita, suspeitas e insinuações de corrupção e, inclusive, de conviver com casos reais de corrupção que vêm a público, já que a lida com o submundo é direta. O Ministério Público nunca foi habituado a nada disso. E mesmo a corrupção, que certamente sempre existiu no órgão, os desvios que são comuns a qualquer entidade humana, acabavam camuflados porque não havia uma atividade de maior exposição, tratava-se de uma atuação restrita a gabinetes. Nessa situação, mesmo os casos de efetiva corrupção são menos visíveis e o órgão como instituição é preservado.

Acontece que a atividade de investigação criminal direta implica em atuação de maior proximidade com o submundo e de muito maior exposição. Os fatos, a realidade, se impuseram e, hoje, vemos, não um Promotor interiorano, mas o procurador geral da República sentado num boteco “pé sujo” em conversa que gera suspeitas com um advogado envolvido em caso de grande repercussão. A foto mostra o Procurador trajando vestes informais, com óculos escuros, com toda a aparência do estereótipo de um investigador dos anos 1960 ou 1970, frequentando locais de nível duvidoso para encontros com informantes das mais variadas espécies (criminosos, prostitutas (os) etc.). Só faltaram as correntes e pulseiras de ouro e camisa com os botões entreabertos no peito. Ele falava com um advogado, é verdade, mas era um causídico envolvido em um caso rumoroso, o qual acaba de gerar um escândalo acerca de uma delação que já era objeto de crítica generalizada e envolvia a corrupção (em tese) de um outro Procurador da República, braço direito do Procurador Geral em questão. A alegação é de uma conversa sobre “banalidades” e de um “encontro casual” naquele local. Mas, e a “mulher de Cesar”? E a imagem imaculada do Ministério Público? Para onde foram? Como serão recuperadas?

E é de se notar que o Ministério Público, especialmente o Federal, não lida com a criminalidade comum, está em um nível de “White Collar Crime”, mas mesmo assim consegue se enlamear. Imagine se realmente tomasse para si, a sério, sem seletividade, a investigação criminal direta. Se mesmo em casos de colarinho branco consegue se expor de tal forma, imagine-se numa situação em que atuasse como verdadeiro investigador, não como este que escolhe quando quer atuar, quando não quer, qual criança caprichosa que diz, disso eu quero brincar, disso não!

Onde a alvura parecia grassar praticamente sem limites, agora surgem manchas por todos os lados, mesmo quando se atua de forma totalmente seletiva. Como afirma Zagrebelsky, “até mesmo assumir responsabilidades pode ser um ato irresponsável”. [3] E a responsabilidade de manter a imagem imaculada de uma instituição, mergulhando-a na investigação criminal é algo que somente num ato de plena e absoluta irresponsabilidade se pode assumir. Fato é que o Ministério Público teve o que desejava e é preciso mesmo ter cuidado, muito cuidado com o que se deseja!


Referências
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O papel do Inquérito Policial no Sistema Acusatório: O modelo brasileiro. Disponível em www.jusbrasil.com.br, acesso em 11.09.2017.

DELMANTO, Roberto. et al. Leis Penais Especiais Comentadas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

ZAGREBELSKY, Gustavo. A crucificação e a democracia. Trad. Monica de Sanctis Viana. São Paulo: Saraiva, 2012.


[1] DELMANTO, Roberto. et al. Leis Penais Especiais Comentadas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 998.

[2] Para um estudo mais aprofundado sobre o tema, sugerimos o nosso Estatuto do Delegado de Polícia Comentado – Lei 12.830/13. Rio de Janeiro: Processo, 2017.

[3] ZAGREBELSKY, Gustavo. A crucificação e a democracia. Trad. Monica de Sanctis Viana. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 126.

Fonte: ConJur

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