Limite à análise da liberdade pelo delegado viola direitos humanos
Por Ruchester Marreiros Barbosa*
O Tribunal de Justiça do Acre utilizou o artigo do delegado Fabrício de Santis, da Polícia Civil do RS, como fundamento sobre as funções judiciais do cargo de delegado de polícia como garantidor de direitos fundamentais, no que demonstraremos, sem pretensão de esgotar o tema, tratar-se de um tímido avanço rumo à adoção em nosso ordenamento do controle de convencionalidade pelo delegado de polícia.
O título da notícia (Desembargadores criam jurisprudência com base em artigo de delegado e mantém prisão de 44 réus do PCC) pode intuir ao público em geral que o artigo foi utilizado para prisão, mas na verdade os fundamentos serviram para rebater tese defensiva de incompatibilidade do artigo 310 do Código de Processo Penal com o artigo 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecido como Pacto de San Jose da Costa Rica[1].
Dentre os fundamentos de validade[2] no exercício de funções judiciais ou materialmente jurisdicionais, como já decidiu neste sentido a Corte Interamericana de Direitos Humanos a serem exercidas por órgão do poder executivo, no caso do Brasil, pelo delegado de polícia, o Tribunal citou, então, o excelente artigo científico, mencionando o desempenho do delegado de polícia no importante papel de garantidor, ao atribuir eficácia prática, no ordenamento jurídico interno, aos tratados internacionais sobre direitos humanos.
Apesar da parte dispositiva do acórdão se referir a manutenção de prisões de 44 réus, acusados de serem membros do crime organizado, os fundamentos utilizados do artigo não se fundamentam somente à retórica do aprisionamento, mas também à liberdade.
Em apertada síntese, o Pacto de San Jose da Costa Rica passou por uma (re)análise histórica em 3 de dezembro 2008 pelo Pleno do STF, na qual julgou em sede do HC 87.585-TO e RE 466.343-SP, que a referida norma internacional, por ter sido ratificada antes da emenda constitucional 45/04 e ter adotado o rito legislativo de lei ordinária e, portanto, formalmente contrário ao artigo 5º,parágrafo 3º da Constituição, possui, então, status de norma supra legal.
Diante deste quadro constitucional e o novo status dos tratados sobre direitos humanos (antes de 2008 o STF entendia que a CADH tinha status de lei ordinária), surge um novo paradigma a respeito da hierarquia das leis e a constituição, fortalecendo, por um lado o apego pelo positivismo do século XIX, representada pela pirâmide de Kelsen[3], mas por outro lado, ao editarem a súmula vinculante 25, sacramentaram a lógica da “permeabilidade do trapézio centrado no human rights approach”, oriunda do diálogo das fontes[4] de Erik Jayme em exclusão ao critério de solução de conflito de normas clássico:
“‘Diálogo’ porque há influências recíprocas, ‘diálogo’ porque há aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção pela fonte prevalente ou mesmo permitindo uma opção por uma das leis em conflito abstrato – solução flexível e aberta, de interpenetração, ou mesmo a solução mais favorável ao mais fraco da relação (tratamento diferente dos diferentes)”.
Flávia Piovesan afirma categoricamente que a função do Estado deve adotar emergencialmente um novo paradigma jurídico: “da hermética pirâmide (Kelsen) centrada no state approach à permeabilidade do trapézio centrado no Human rights approach.”[5]
A possibilidade de o delegado de polícia realizar contenção de poder punitivo não advém do cargo somente, mas da sua função essencial e exclusiva “de”/“ao” Estado de Direito[6] como microcosmo político do processo penal, afastando aplicabilidade de normas inconstitucionais, podemos afirmar que isso já é realizado na prática, já que os tratados estão acima dos Códigos, mas a doutrina ou não se deu conta ou não se interessa de produzir conhecimento a respeito.
Afirmamos tal filtragem plenamente possível, haja vista que a polícia judiciária é um dispositivo democrático[7], mas que aqui não iremos nos aprofundar, limitar-nos-emos em reproduzir a doutrina tradicional na qual se limita a afirmar, em linhas gerais, que o controle de constitucionalidade difuso é efetivado somente (?) pelo juiz. No entanto, com a alteração da pirâmide de Kelsen, através do novo enquadramento dos tratados de direitos humanos na hierarquia das normas, como norma supralegal pelo STF, a quem essa mesma Constituição definiu controlar a efetividade das normas supralegais quando em conflito com leis inferiores a elas, sem, ainda, utilizar o sistema do diálogo das fontes?
Respondemos: o Delegado de Polícia realiza análise jurídica do fato e suas circunstâncias, conforme conteúdo do disposto no artigo 2º, caput e parágrafo 1º da lei 12.830/13, cujo sentido é atribuir ao cargo função de hermeneuta das circunstâncias fáticas com profícuo propósito de engendrar contornos jurídicos aos atos do Estado-investigador (atos policiais).
Em especial, no auto de prisão em flagrante, no exercício da função jurídica e exclusiva de Estado, o Delegado se torna o único a poder realizá-lo. Não há nenhum óbice em se efetivar uma interpretação sistêmica e definir o resultado hermenêutico por meio de controle de convencionalidade[8]. Sempre será cabível esta função, seja pelo Delegado de Polícia ou qualquer outra função jurídica na qual emanem poderes decisórios.
Não olvidamos em sistematizar neste contexto a estrita legalidade inserida no artigo 37 da Constituição, segundo ao qual a administração pública age somente quando autorizada por lei. Neste aspecto, a Lei 12.830/2013 pode ser entendida como a ponte de diamante por ser uma norma que contém o núcleo duro irrenunciável ao direito de liberdade na análise jurídica da captura do imputado, sendo inconvencional qualquer norma que crie obstáculos ao exercício desta função pelo Delegado de Polícia, devendo ser afastada pelo delegado a fonte que maior garantia possa ser efetivada em nome do princípio pro homine[9], como é o caso do artigo 322 do Código de Processo Penal, que limita irracionalmente a análise do direito de liberdade do suspeito em sede policial apenas para os crimes cuja pena máxima não ultrapasse 4 anos, criando distinção arbitrária despida de fundamentos jurídicos.
Exige-se do delegado em sua função jurídica, no exercício do controle de convencionalidade, que ele atribua plena eficácia, não somente ao tratado, mas ao bloco de convencionalidade[10], que consiste, em síntese, interpretar o caso concreto conforme os precedentes da Corte IDH, tenha sido o Brasil condenado ou qualquer outro pais, considerando-se também, opiniões consultivas emitidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Costa Rica) e os relatórios da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Washington, DC).
Neste sentido, o professor Luiz Flávio Gomes[11], assevera que a investigação preliminar cumpre a “função de filtro processual contra acusações infundadas”, embora a sua própria existência já “configure um atentado ao chamado status dignitatis do investigado” , e daí decorrem duas conclusões: a primeira é que a investigação prévia através do inquérito policial é uma garantia constitucional do cidadão em face da intervenção do Estado na sua esfera privada, porque ela atua como salvaguarda do jus libertatis e do status dignitatis; a segunda é que a investigação prévia não é somente fase anterior do processo penal, porque mesmo quando não há processo a investigação terá cumprido um papel na ordem jurídica.
O delegado de Polícia é o primeiro jurista, portanto, a atribuir juridicamente os efeitos pretendidos pela norma ao ter acesso ao fato criminoso, tendo a atribuição de analisar juridicamente os fatos ocorridos e promover eficiente investigação criminal, sendo esta a razão da promulgação da Lei 12.830/2013, na qual o delegado de Polícia figura como cargo de natureza jurídica inserido no sistema de justiça criminal, o que leva a doutrina lhe atribuir “função essencial à justiça, como garantia implícita na Constituição”[12].
O Tribunal de Justiça do Acre, seguindo orientação tese de precedente da Corte Interamericana[13], que em razão do contido no disposto do artigo 7.5 do Pacto de San Jose da Costa Rica, o Delegado de Polícia exerceria função materialmente judicial, senão vejamos:
“Esta Corte considera que para satisfazer a garantia prevista no artigo 7.5 da Convenção em questão migratória, a legislação interna der garantir que o servidor público autorizado por lei a exercer funções jurisdicionais preencha as características da independência e imparcialidade que deve reger todo órgão responsável por definir direitos e obrigações das pessoas. Neste sentido, a Corte tem estabelecido que as referidas características não devem pertencer somente aos órgãos estritamente jurisdicionais, mas que as garantias previstas no artigo 8.1 da Convenção também se aplicam às decisões de órgãos administrativos. Todas as vezes que esta garantia se relacionar as atribuições do servidor público que tenha por função prevenir e fazer cessar capturas ilegais ou arbitrárias, sendo imprescindível que o referido servidor tenha capacidade de devolver a liberdade da pessoa quando sua captura for ilegal ou arbitrária. (tradução nossa)”
No mesmo sentido o Caso Nadege Dorzema e outros vs. República Dominicana[14] e citando como precedente a opinião consultiva, OC-9/87 de 6 de outubro de 1987, ipsis literis:
“Tais garantias devem ser atendidas devem ser observadas por qualquer órgão do Estado que exerçam funções materialmente jurisdicionais, ou seja, qualquer autoridade pública, seja administrativa, legislativa ou judicial, que tenha poder de decisão sobre direitos ou interesses das pessoas através de suas decisões. (tradução nossa)”
Basta ter olhos para se ver que a Corte IDH adota um sistema descentralizador de garantia da liberdade (a lei pode autorizar órgão não estritamente jurisdicionais) aos direitos humanos fundamentais, discurso este bem harmônico e uníssono com a denominada reserva relativa da jurisdição, na qual Canotilho[15] já nos ensina que o juiz, nestes casos (liberdade), não tem o monopólio da primeira palavra, mas sim da última, distinto do que ocorre na reserva absoluta da jurisdição, em que o juiz tem a primeira e última palavra sobre uma decisão (prisão preventiva).
Isto significa dizer, que a CADH entende ser necessário “pressa” em ter analisada a situação jurídica de desvantagem do sujeito imputado pelo sistema de justiça criminal (inclui-se a fase “pré-processual”), sendo plenamente convencional e constitucional gabaritar juridicamente outro órgão que tenha estrutura (jurídica, inclusive) para a análise da prisão e liberdade ainda em fase de investigação criminal, principalmente porque nosso Código de Processo Penal, em seu artigo 282, parágrafo 2º veda expressamente a atuação do juiz em fase de investigação criminal, podendo exercer sua função nesta fase como um segundo garantidor dos direitos fundamentais para analisar a juridicidade da prisão em flagrante e convertê-la em prisão preventiva, desde que devidamente provocado.
Colocar somente o ator judiciário como único órgão efetivador do alcance jurídico e político da eficácia do princípio pro homine é engessar os direitos humanos fundamentais, e criar uma interpretação “nacionalista”[16] e não “inter-cortes”[17], como já ocorre nas Cortes Supremas da Costa Rica, Bolívia, República Dominicana, Peru, Colômbia e Argentina[18].
O conjunto de normas de direito constitucional internacional humanístico complementam as garantias fundamentais da pessoa humana trazida pela Constituição da República, formando um sistema ou “bloco de convencionalidade”[19], à semelhança do conhecido bloco de constitucionalidade, que tem como escopo, primordialmente, servir de anteparo para contenção das massas, ou seja, da vontade da maioria, ao contrário do populismo penal midiático[20]:
A maioria não pode dispor de toda a ‘legalidade’, ou seja, não lhe está facultado, pelo simples facto de ser maioria, tornar disponível o que é indisponível, como acontece, por ex., com direitos, liberdades e garantias e, em geral, com toda a disciplina constitucionalmente fixada (o princípio da constitucionalidade sobrepõe-se ao princípio maioritário).[21]
Diante disso, o Pacto de San Jose da Costa Rica, bem como todos os documentos internacionais de direitos humanos são normas (que não se confundem com dispositivos), que se revertem como um verdadeiro manto protetor, esculpido no mármore das garantias, contra o abuso do poder punitivo do Estado, na qual é evidente que se engloba o poder persecutório.
Assim, o Delegado de Polícia deve no exercício de sua função garantidora dos tratados e convenções sobre direitos humanos realizar o controle de convencionalidade e efetivar concretamente tais garantias, em especial aqui mencionada, da liberdade, sendo forçoso concluir, que neste diapasão, considerar o artigo 322 do CPP vigente é limitar a expansão do direito à liberdade, é manter uma arbitrariedade tal qual se mantém a decretação de ofício da prisão pelo judiciário em sede de investigação criminal, por ser violadora dos direitos humanos, que não sobrevive ao referido controle, seja pelo diálogo das fontes, seja pela, hoje, retrógrada lógica piramidal de Kelsen.
*Texto atualizado às 15h25 do dia 16/2.
[1] A Convenção é de 1969, tendo sido ratificado formalmente no Brasil pelo Dec. 678/92
[2] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Controle de Convencionalidade das Leis.
[3] GOMES, Luiz Flávio. Controle de Convencionalidade: STF Revolucionou Nossa Pirâmide Jurídica.
[4] MARQUES, Claudia Lima. Manual de direito do consumidor. 2. ed. rev., atual. e ampl. Antonio Herman V. Benjamin, Claudia Lima Marques e Leonardo Roscoe Bessa. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 89/90.
[5] Controle de Convencionalidade: um panorama latino-americano: Brasil, Argentina, Chile, México, Peru, Uruguai, PIOVEZAN, Flávia et al., coord. Luiz Guilherme Marinoni, Valerio de Oliveira Mazzuoli. Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2013, p. 118
[6] Art. 2º da lei 12.830/2013.
[7] BARBOSA, Ruchester Marreiros. A Polícia Judiciária é um dispositivo democrático na Justiça Transicional.
[8] MAZZUOLI, Valeiro de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro Revista Informação Legislativa. Brasília a. 46 n. 181 jan./mar. 2009 , p.113 a 137
[9] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Controle Jurisdicional Da Convencionalidade Das Leis. São Paulo, 3.ed. revista, atualizada e ampliada, Revista dos Tribunais, 2013, p.146.
[10] MAZZUOLI, Ibidem, 99/100.
[11] GOMES, Luiz Flávio e SCLIAR, Fábio. Investigação preliminar, polícia judiciária e autonomia.
[12] NICOLITT, Manual de Processo Penal, 5ª ed., São Paulo: RT, 2015, p. 172
[13] Corte IDH. Caso Vélez Loor Vs. Panamá. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 23 de noviembre de 2010 Serie C No. 218, pág. 108
[14] Caso Nadege Dorzema e outros Vs. República Dominicana, no parágrafo 195Serie A Nº 9, pág. 27
[15] CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed., 11. reimp., Almedina, Almedina, p.584.
[16] MAZZUOLI, ob. cit. p, 101.
[17] MAZZUOLI, ibidem, p. 104.
[18] Na Suprema Corte Argentina os Casos Simón (2005) e Mazzeo (2007)
[19] MAZZUOLI, ibidem, p. 100.
[20] GOMES, Luiz Flávio e ALMEIDA, Débora de Souza de; Coordenação: BIANCHINI, Alice; MARQUES, Ivan Luís e GOMES, Luiz Flávio. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. São Paulo, 2ª reimpr., Saraiva, 2013, p.98/130.
[21] CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7 ed., 11ª reimp., Almedina, Almedina, p.329.
* Ruchester Marreiros Barbosa é delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, doutorando em Direitos Humanos na Universidad Nacional de Lomas de Zamora (Argentina), professor de Processo Penal da Emerj, da graduação e pós-graduação de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estacio de Sá (RJ) e do curso CEI. Membro da International Association of Penal Law e da Law Enforcement Against Prohibiton.
Fonte: Site Consultor Jurídico