Lei de Drogas: é preciso mudar?
Por Jorge da Silva*
Em 22 de agosto, representantes da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD) levaram ao presidente da Câmara, Marco Maia, um anteprojeto de mudança da Lei de Drogas. Um dos propósitos da iniciativa é retirar os usuários e dependentes da alçada do sistema penal, passando a preocupação com os mesmos para a esfera administrativa, com ênfase nos campos da saúde, da assistência social e da educação. O anteprojeto também visa distinguir de forma mais objetiva o traficante do usuário.
Tema polêmico, é compreensível que vozes se levantem contra, temerosas de que se trate simplesmente de liberar o consumo. Afinal, são décadas da chamada “guerra às drogas”, período em que os usuários têm sido tratados como criminosos e acusados de culpa pela expansão do tráfico. Não se poderia esperar reação diferente.
De qualquer modo, importante mesmo é a oportunidade de discutir a questão de forma aberta e no local próprio, o Congresso Nacional. Felizmente, num ponto já há consenso. Tanto os opositores da proposta quanto os seus defensores concordam que as drogas psicoativas trazem prejuízos ao indivíduo e à sociedade. Há acordo também quanto ao fato de que as drogas, ilícitas ou lícitas, devam ser controladas.
É nesse ponto que começam as divergências, pois a escolha (sim, escolha) entre lícitas e ilícitas, e entre “mais perigosas”, “menos perigosas” e “não perigosas” passa a depender mais de interesses econômicos e políticos do que da ciência. Tanto que drogas que causam doenças em escala e mortes, como o álcool e o tabaco, podem ser consumidas à vontade. (Alguém dirá: “Então vamos criminalizar essas também!”)
Além disso, para uns, controlar significa proibir, com delegação à polícia para cumprir esse mandato; para outros, controlar significa prevenir e dissuadir, com políticas que visem a conter o abuso, evitar danos pessoais e sociais, e tratar os dependentes. Lamentavelmente, qualquer proposta nessa última direção tem sido vista como leviana, o que gera um sectarismo paralisante: de um lado, colocam-se os autoproclamados missionários do bem; de outro, os acusados de serem propagadores do mal. Quanto simplismo!
Um argumento dos opositores merece consideração, pois é recorrente a ideia de que mudanças como as ora propostas estimulariam o consumo. Tal receio, no entanto, não se confirmou em sociedades em que o consumo deixou de ser crime, do que é exemplo emblemático o caso de Portugal. Em julho de 2001, depois de acaloradas discussões, o parlamento português aprovou lei que descriminalizou o consumo privado e a posse para uso próprio de pequenas quantidades, não só de maconha, mas de todas as drogas. Lá também, os que eram contra temiam que houvesse uma corrida às drogas. Não foi o que aconteceu, como já o demonstraram diversos estudos, com destaque para o de Glenn Greenwald (Drug decriminalization in Portugal, Washington, D.C.: Cato Institute, 2009).
Há argumentos, porém, que não contribuem para a discussão. Primeiro, o de que pesquisas comprovam os efeitos negativos da Cannabis se usada de forma prolongada. Como se isso fosse novidade, e como se a CBDD afirmasse que a Cannabis é alguma panaceia. Ora, a questão não é essa, e sim saber o que fazer para afastar os jovens das drogas, e não as drogas dos jovens, valendo o raciocínio para o álcool, droga psicoativa sabidamente embotadora da inteligência.
Segundo, o argumento de que o uso de drogas consideradas leves é porta de entrada para as mais pesadas, raciocínio que eles não aplicam ao álcool e ao fumo, só por serem “legais”. Terceiro, o de que seria uma causa elitista. Não é. O flagelo não escolhe classe social. Se jovens, ricos ou pobres, se desajustam e desesperam as suas famílias, ou morrem por overdose e ingestão de drogas “batizadas” com cal, pó de gesso etc., milhares de outros têm morrido por tiros durante os embates entre facções, e entre essas e as forças de segurança; e cidadãos e cidadãs inocentes, também em escala, têm morrido só por morarem em “comunidades”.
Bem, se todos reconhecem que o modelo atual só tem trazido dores, para que mantê-lo intacto, ou pedir para aumentar a dose do remédio?
* Jorge da Silva é membro da Comissão Brasileira Sobre Drogas e Democracia,
foi chefe do Estado-Maior Geral da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ)
Fonte: Jornal Correio Braziliense