Lei 13.491/2017 reforça militarização da segurança pública e da Justiça Penal
A promulgação da Lei 13.491/2017, de 13 de outubro de 2017, que amplia a competência da Justiça Militar da União com o intuito de processar e julgar os homicídios praticados por membros da Forças Armadas contra civis, teve como norte as chamadas “Operações de Garantia da Lei e da Ordem” (Op GLO).
Esse tipo de medida, tão comentada em outras edições desta coluna (aqui e aqui), apresenta-se definida pelo Ministério da Defesa como “uma operação militar determinada pelo presidente da República e conduzida pelas Forças Armadas de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, que tem por objetivo a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio em situações de esgotamento dos instrumentos para isso previstos no artigo 144 da Constituição ou em outras em que se presuma ser possível a perturbação da ordem” (Portaria Normativa 186/MD/2014).
Não custa lembrar que, muito embora tidas como excepcionais e episódicas no plano legal (artigo 142 da CRFB, artigo 15 da LC 97/99 e Decreto 3.897/01), as operações de garantia da lei e da ordem se tornaram uma verdadeira regra de administração dos conflitos sociais e do jogo da violência na realidade brasileira. Citem-se, a título de exemplo, os inúmeros “Decretos GLO” editados apenas no ano de 2017: Rio de Janeiro (28 de julho a 31 de dezembro de 2017), Distrito Federal (Esplanada dos Ministérios 24 a 25 de maio de 2017), Espírito Santo (06 de fevereiro a 08 de março de 2017), Região Metropolitana do Rio de Janeiro (14 a 22 de fevereiro de 2017), Espírito Santo (06 de fevereiro a 16 de fevereiro de 2017), Região Metropolitana do município de Natal (20 de janeiro a 04 de fevereiro de 2017) e por todo o Sistema Penitenciário Brasileiro (17 de janeiro de 2017 a 17 de janeiro de 2018).
Fica evidente a opção política pelo reforço da militarização da insegurança, pública e jurídica, como braço operativo de um estado de exceção neoliberal. De fato, o incremento do paradigma beligerante em substituição à alteridade, enquanto forma de governo dominante, representa uma constante na política brasileira dos últimos anos, cujos efeitos mais visíveis estão no campo da segurança pública e da justiça penal.
No tocante ao objeto específico desta coluna, sabe-se que, desde a Lei n. 9.299/96, que alterou o artigo 9º do CPM, os crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis, sejam tentados sejam consumados, perderam a natureza castrense[1] e passaram a ser julgados pela Justiça Comum, mais especificamente pelo Tribunal do Júri (artigo 5º, XXXVIII, da CRFB). O que foi, posteriormente, repetido pela Emenda Constitucional n. 45/04 ao disciplinar a competência da justiça militar estadual (artigo 125, § 4º, da CRFB[2]).
O que se tem, agora, contudo, em nítida oposição aos diplomas internacionais de direitos humanos e aos próprios fundamentos constitucionais declarados de cidadania e dignidade da pessoa humana como base republicana nacional (artigo 1º, incisos I e III, da CRFB) é a ampliação da competência castrense federal por meio de uma reconfiguração oportunista da natureza legal dos crimes em questão.
A manobra casuística operada pela Lei 13.491/2017 apenas pode ser compreendida segundo a racionalidade jurídica de exceção, responsável pela abertura de um verdadeiro espaço de indeterminação normativa necessário à legitimação formal (ou legalidade aparente) do uso das forças armadas como órgãos de segurança máxima da ordem pública, ou melhor, de guardião do regime social das desigualdades.
Frise-se que o suposto “rol taxativo de hipóteses” (excepcionais?), inaugurado pelo § 2º, do artigo 9º, do CPM, apresenta, na verdade, uma amplitude lingüística que se presta a qualquer situação de (ab)uso. É plenamente possível, com base apenas nesse dispositivo, sem filtragem constitucional ou convencional, à semelhança do que já ocorre com a (des)cautelaridade processual da prisão preventiva do artigo 312 do CPP, toda sorte de violações aos direitos e garantias individuais. Isso porque a norma em comento indica a tutela dos mais variados interesses: de governo (inciso I), de vigência institucional militar mesmo fora de guerra declarada (inciso II) ou de segurança interna para a garantia da lei e da ordem (inciso III). A elasticidade dos significantes, definitivamente, não é por acaso.
Em resumo, mudou-se a lei para estabelecer que os crimes dolosos contra a vida praticados por membros das Forças Armadas contra civis, no exercício anormal de suas funções, gozam de natureza militar e, portanto, ficam sujeitos a um juízo especial, diverso daquele constitucionalmente previsto que seria o Tribunal do Júri. É, no fundo, uma maneira aparentemente legal de afastar a garantia constitucional do juízo natural civil/não militarizado que vigorava segundo as regras de competência material.
Em que pese tratar de modificação exclusiva no âmbito da Justiça Militar da União, sem qualquer repercussão jurídica oficial na esfera de competência estadual, certamente em breve surgirão posicionamentos classistas no sentido de que seja conferida a mesma disciplina normativa aos crimes dolosos contra a vida praticados por militares estaduais, atualmente submetidos à instância comum de processo e julgamento do tribunal do júri e à investigação preliminar da polícia civil.
Para além da mera análise jurídica, essa alteração legislativa diz muito a respeito dos afetos predominantes que circulam no militarismo de ocasião que invade os mais diversos setores da sociedade brasileira. O discurso de “combate ao inimigo”, próprio de um Estado policial, que está a inspirar essas modificações legislativas a respeito do tratamento jurídico conferido às “baixas de guerra”, desvela as pulsões autoritárias que circulam entre nós.
Nesse sentido, a Lei 13.491/2017 deveria ser vista como um grande sintoma a respeito da necessária desmilitarização completa da política (e, por conseqüência, do direito), a fim de garantir a vida concreta de todos os sujeitos em comunidade.
[1] Nesse sentido: DUCLERC, Elmir. Direito Processual Penal. 03 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 330 / NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 359 / STJ – Quinta Turma – HC 102.227/ES – Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima – j. em 27/11/2008 – DJ de 19/12/2008.
[2] Art. 125, § 4º, da CRFB: “Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças”.
Fonte: Conjur / Por: Leonardo Marcondes Machado