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A impunidade e a memória

A impunidade e a memóriaPor Edemundo Dias*

“A impunidade não salva da pena o castigo merecido; retarda-o para fazê-lo mais grave pela reincidência e agravação dos crimes subsequentes”. (Marquês de Maricá)

A impunidade é o maior laurel do delito, colige à sua repetição e faz seu merchandising; instiga o delinquente e torna contagioso seu modelo. E quando o delinquente é o próprio Estado, que corrompe, prevarica, viola e rouba sem prestar contas a ninguém, enuncia desde o topo a luz verde que autoriza a coletividade inteira a corromper, prevaricar, violar e roubar. O mesmo comando que, no andar de baixo, usa o espantalho do castigo para assombrar, no andar de cima, ergue a impunidade como insígnia para galardoar o crime. Impunidade é poder! Poder é impunidade!

A sociedade permissiva paga o preço da sua liberalidade, ou melhor, da sua petulância. É semelhante ao ladrão de esquina que, apanhado em flagrante delito, ainda com o produto do roubo na mão, inquire sem qualquer disfarce – que castigo mereço eu que roubei alguns trocados, se os mandatários da nação roubam bilhões de dólares, assacam as estatais e andam faceiros pelas ruas, são heróis nos palanques dos partidos políticos e aos domingos comungam piedosamente nas missas?

A justiça e a memória são luxos exóticos no Brasil. Quantos traficantes do tipo “Marcelo Zói Verde” precisarão ser soltos pela “Justiça” e acobertados pela burocracia processual penal? Se o “Petrolão” já nos fez esquecer o “Mensalão”, quantos outros escândalos, como o do preanunciado BNDES, nos fará esquecer o “Petrolão”?

Os brasileiros acostumamo-nos ao desprezo pela história e à proibição de lembrar. Os meios de comunicação e as escolas não se afeiçoam a contribuir para a integração da realidade à memória. Cada fato está desintegrado dos demais fatos, divorciado de seu passado e dissociado do passado dos demais. A cultura virtual, rarefeita, do imediatismo, da instantaneidade, do consumo e do espetáculo adota a cultura da desvinculação que nos adestra à crença de que as coisas ocorrem mesmo sem motivação. A corrupção e a inapetência agigantam-se em face da conjuntura desajustada do País, que humilha a nossa cidadania perante outras nações. A propósito, o Brasil é marcado no imaginário mundial como “o país da impunidade”. Mas, até quando isto será uma fatalidade que estaremos obrigados a aceitar sem a menor indignação?

Diz-se comumente que a história se repete como farsa ou como tragédia, mas de igual modo se repete como penitência para quem é incapaz de discerni-la. Não há história muda. Por mais que burlem, por mais que mintam, a história jamais calará a sua boca, antes anunciará a sua desforra aos berros.

Hoje mesmo revi alguns dos meus alfarrábios — antigos textos escritos aqui neste mesmo espaço de opinião — e vi que a nossa história vem se repetindo cada vez mais trágica e penosamente; vi que continuamos reféns da recalcitrante e crescente violência que tem como principal causa a leniência do poder público, porque continuamos a lidar com a morte como se as pessoas fossem números frios nas resenhas dos computadores, das frias salas condicionadas dos tecnocratas de plantão.

Assim, o direito de lembrar é sagrado. E lembrar, hoje, como forma de melhorarmos os serviços imprescindíveis do Estado, da justiça criminal, da segurança do cidadão… Advirta-se, sobretudo, que o direito de lembrar deveria até configurar entre os direitos consagrados pelas Nações Unidas. É, aliás, imperioso reivindicá-lo e praticá-lo. Não para repetir o passado, mas para incisivamente evitar que se repita; não para que sejamos ventríloquos dos mortos, mas para que sejamos capazes de falar com vozes não condenadas ao eco perpétuo da mesmice e da desgraça. A memória viva não só contempla a história, mas ajuda a fazê-la; não nasceu para escora, mas para catapulta; não renega a melancolia do passado, mas se insere com intrepidez no presente.

Ouçam todos: a impunidade é filha do silêncio, e o silêncio, rebento da falta de memória. O Brasil deveria saber muito bem disso quando a elite política dominante tentou calar o ministro Joaquim Barbosa, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, porque quis fazer justiça com base na incômoda e escandalosa verdade. Eis o único fragor capaz de romper com o ardil traiçoeiro da impunidade-poder: a estrepitosa verdade da Justiça.

* EDEMUNDO DIAS DE OLIVEIRA FILHO é delegado de Polícia (aposentado), pastor evangélico e presidente da Academia Goiana de Direito (Acad)

Fonte: Jornal O Popular

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