Em defesa de gerações mais éticas e mais íntegras
Por Erika Kokay*
“Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. (…) Achava-me num deserto. A casa escura, triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas.”
O trecho extraído do livro Infância, de Graciliano Ramos (1892-1953), poderia ser o relato de alguma das 6,5 milhões de crianças que anualmente, em pleno século 21, ainda são vítimas de violência doméstica no Brasil. Como o grande escritor alagoano, muitos hoje são os adultos que carregam as marcas da violência intrafamiliar. A memória não deixa apagar as cicatrizes justificadas pelo duplo vínculo: “Eu te bato, porque eu te amo”.
Essas mensagens antagônicas, que muitas vezes pautam as relações humanas — os homens também fazem isso com as mulheres —, provocam a falta de reconhecimento e cisões na personalidade. Além disso, quem sofre agressões corre o risco de internalizar a violência contra si mesmo e de acreditar ser merecedor do tratamento cruel.
O uso da violência física na educação acaba por se configurar também num cículo vicioso, em que pais batem nos filhos, filhos batem nos irmãos e em colegas de escola, homens batem em suas namoradas, companheiras e esposas, que batem nos seus filhos. Mas é chegado o momento de promovermos mudanças positivas nas relações e de nos pautarmos não pela violência ou por constrangimentos, mas pelo respeito.
É nesse sentido que vem o Projeto de Lei nº 7.672/10, que estabelece o direito da criança e do adolescente de serem educados sem o uso de castigos corporais ou de tratamento cruel ou degradante. O grande desafio dessa etapa da história da humanidade é o resgate da condição humana, que foi coisificada numa sociedade mercantilizada.
A sociedade é mais ética quando as pessoas não têm que viver sob o medo de serem constrangidas, humilhadas. É importante, entretanto, frisar que não queremos interferir na educação que as famílias dão a seus filhos. Exposto na mídia de forma a minimizar a questão como Lei da Palmada, esse projeto não é uma afronta à família, como dizem alguns críticos. A nossa intenção é sensibilizar a sociedade sobre a importância de estabelecer limites, sim, para educar, mas sem a violência, que só diminui e anula o outro e não modifica estruturalmente o comportamento da vítima. A tortura despersonaliza o ser humano, e a vítima tende a ser pouco sincera. Se queremos uma sociedade ética, é essencial haver honestidade.
Quando houve a proibição do uso da palmatória, muitos professores se sentiram cerceados de exercer a educação. Hoje, já está legitimado na sociedade que a criança não pode sofrer violência física em nenhuma instituição. Urge agora que essa lógica de defesa dos direitos da criança e do adolescente entre também dentro de casa. Muitas mães que não admitem ninguém bater em seus filhos se permitem, todavia, espancá-los.
Um bom desenvolvimento implica que pais e cuidadores tenham a capacidade de exercer a sua autoridade, com amor e disciplina, sem precisar deixar marcas na pele e na alma das nossas crianças. Dessa forma, meninos e meninas se tornam adultos plenos, produtivos, solidários, bons cidadãos, bons pais e para sempre bons filhos. Não se formarão sob a óptica de que o mais forte pode dominar o mais frágil.
Outro ponto importante a ser frisado é que o projeto de lei não cria nenhum tipo de responsabilização nova, que não sejam as já previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente ou no Código Penal. Não pretendemos punir os pais, mas sensibilizá-los sobre a importância de ter em casa relações mais afetivas, mais estruturantes. A maioria dos meninos que está na rua é foragida da violência doméstica.
A lei tem, portanto, caráter pedagógico, assegurando a implementação pelo Estado de políticas públicas para capacitar cuidadores, educadores e famílias para abolir a violência. É fundamental estabelecer limites, é certo, mas sem castigos corporais. Defendemos, assim, uma mudança no padrão de se educar as novas gerações, permitindo que elas sejam mais éticas, mais honestas, mais íntegras — seres com consciência crítica, capazes de enfrentar as injustiças e transformar o mundo. É hora de darmos uma resposta à angústia da mãe que nos pergunta: “Onde busco ajuda para parar de espancar a minha filha de quatro anos?”.
*Deputada (PT-DF), preside a comissão especial destinada a analisar o Projeto de Lei nº 7.672/10
Fonte: Jornal Correio Braziliense