Drogas, populismo legislativo e o mito da segurança pública grátis
A política criminal repressiva contra as drogas, iniciada com a “guerra” declarada por Nixon em 1971 (nos EUA), é um dos maiores fracassos mundiais na era da globalização. Não há comprovação científica (em nenhuma parte do mundo) de que essa política tenha diminuído a oferta ou a procura por essas substâncias. Ao contrário, a era tecnológica facilitou seu processamento (diariamente surgem novas drogas no mercado), suas vendas e sua disseminação pandemônica. Os países que conseguiram algum sucesso preventivo nessa área (Portugal é paradigmático) combinaram a política de redução de danos (oferta controlada da droga) com a descriminalização (o porte para uso foi retirado do campo penal). Durante várias décadas os EUA seguiram sua linha dura de guerra contra as drogas. Nenhum sucesso foi alcançado. Agora já estão mudando o enfoque: cinco Estados (Washington e Colorado, por exemplo) já autorizaram a comercialização livre da maconha. Em mais de 20 Estados ela é vendida para fins medicinais (Califórnia, por exemplo).
As drogas são maléficas para a saúde (assim como o álcool, o tabaco, o açúcar etc.). As ciências médicas tornaram isso indiscutível. Mas esse não é o único consenso em torno delas: o outro é que a guerra repressiva (decretada em 1971, por Richard Nixon) fracassou redondamente, sobretudo nos países em desenvolvimento, com instituições capengas, onde o império da lei é precário ou praticamente nulo. A repressão não vem produzindo resultados positivos (diminuição do consumo ou da oferta) e sabe-se que ela gera muitas consequências negativas (como o encarceramento massivo de pobres, das mulheres e dos pequenos traficantes, que constituem 26% dos presídios brasileiros). Pensar de forma contrária é pura emoção e/ou ignorância, que rema contra a maré (numa espécie de nova marcha da insensatez). Enquanto os traficantes (incluindo-se agora os virtuais) vendem drogas, para combatê-los o legislador brasileiro (populista), aproveitando-se do mito da segurança pública grátis (que é extrativista da emotividade popular), vende para a população o entorpecente das leis penais novas mais duras (“leis duríssimas”, dizem), dizendo que é a solução do problema. Delírio puro!
A cada modificação legislativa os criptomercados respondem com mais produtos e novos avanços tecnológicos e químicos. Por esse caminho ineficaz do mito da segurança pública grátis a humanidade não vai alcançar nenhum tipo de equilíbrio para a questão do uso e comercialização de drogas, que são mais antigas que andar para frente (delas já fazia uso, por exemplo, o imperador chinês Shen Nung, em 2.727 a. C.). A boa política reside na educação imediata de todos (em período integral). Os jovens dos países mais civilizados, com economia distributiva (Escandinávia, Canadá, Coreia do Sul etc.), são os mais bem informados e, consequentemente, os que menos usam drogas no planeta. Não existe nenhuma lei impeditiva no Brasil de serem colocados amanhã mesmo todos os jovens (crianças e adolescentes, todos) em escolas de qualidade, em período integral. A educação no século XXI continua sendo o equivalente moral da escravidão dos séculos XVI-XIX (Giannetti). Essa é a primeira grande revolução que a parceria público/privada deveria promover no nosso país. Tudo o mais não passa de reformas ineficazes, decorrentes do mito da segurança pública grátis (o povo inconsciente resiste enxergar o óbvio ululante de que as alterações legislativas não mudam a realidade).
O mito da segurança pública grátis (que pretende resolver o problema da insegurança pública apenas com alterações das leis penais, sem custos aparentes para a sociedade) não constitui uma linha político-criminal objetiva e sensata (fruto de contrastada pesquisa criminológica), sim, uma realidade imaginada (uma ficção, um malogro), que faz parte do enviesado sistema de controle social pátrio, retratando o ápice do ilusionismo populista (sobretudo no delicado campo da segurança pública). Desde 1940 acredita-se na magia descabelada de que o aumento do rigor penal (nos textos legais) é tudo que o País necessita. Mesmo as sociedades maduras não têm se livrado desse pernicioso populismo penal (fundamentalmente midiático e legislativo). Preferimos a ilusão legislativa e esquecemos por completo a certeza do castigo (que já era reivindicado por Beccaria, em 1764, como o caminho correto).
O mito da segurança pública grátis pratica um regime de extrativismo emocional, ad aburdum, que vai gerando, por onde passa, o rastro da decadência e da dizimação, que pode significar, conforme a intensidade e a durabilidade, um caminho sem volta (de venezuelização ou de africanização do Brasil). É mais do que evidente que nenhuma nação, por mais próspera que seja (ainda que se trate da sétima economia mundial), consegue sustentar a estelionatária e trágica política da segurança pública grátis (que diz que tudo se resolveria com algumas palavras escritas num papel e publicadas no diário oficial), que corrói diariamente toda musculatura social (já exangue), minando suas energias vitais a ponto de transformá-la num mero molusco desvertebrado, que navega à deriva nas ondas das reiteradas promessas não cumpridas (de segurança e tranquilidade sociais). O ministro Luís Roberto Barroso (num voto recente, no STF) foi lapidar: “Insistir no que não funciona não faz sentido” (O Globo 16/5/15).
* Luiz Flávio Gomes é jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).