Autonomia da polícia judiciária é antídoto contra impunidade e corrupção
Por Henrique Hoffmann Monteiro de Castro*
Dúvidas não existem de que as funções de polícia judiciária e de apuração de infrações penais qualificam-se como essenciais e exclusivas de Estado[1]. O delegado de polícia, ao conduzir a investigação criminal por meio dos vários procedimentos legais, de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, isenção e imparcialidade[2], exerce função de natureza jurídica[3] e contribui decisivamente para a consecução do dever estatal de garantia da segurança pública[4].
Deveras, a devida investigação criminal[5] traduz importante instrumento de tutela de direitos fundamentais, não só da vítima e das testemunhas, mas do próprio investigado. Materializa a via pavimentada a ser percorrida pelo Estado para que a atuação restritiva na esfera de liberdades públicas do cidadão não se convole em arbítrio[6].
A investigação policial, que deve ficar a salvo de ingerências indevidas, sob pena das penalidades administrativas, cíveis e criminais pertinentes[7], consiste em função essencial à Justiça, ainda que não figure no capítulo respectivo da Constituição[8].
Sem desconhecer essas premissas, alertou o precursor do garantismo penal:
A polícia judiciária, destinada, à investigação dos crimes e a execução dos provimentos jurisdicionais, deveria ser separada rigidamente dos outros corpos de polícia e dotada, em relação ao Executivo, das mesmas garantias de independência que são asseguradas ao Poder Judiciário do qual deveria, exclusivamente, depender[9].
Se essa atividade estatal é capaz de repercutir nos bens jurídicos mais caros ao cidadão, quais sejam, liberdade, patrimônio e intimidade, retirando o eu e suas circunstâncias[10],ao seu entorno deve ser concebido um escudo contra ingerências draconianas, em benefício da dignidade da pessoa humana.
O Legislativo não diverge ao afirmar que:
Para que a condução dos trabalhos de investigação possa ser realizada com a eficiência que a sociedade clama, faz-se necessária a garantia de autonomia na investigação criminal (…) Com tais medidas, a investigação ganhará em agilidade, qualidade e imparcialidade, pois o delegado de polícia não sofrerá interferências escusas na condução do inquérito policial ou do termo circunstanciado[11].
Nunca é demais realçar que o Estado deve garantir os meios para que o delegado de polícia não fique vulnerável a toda sorte de pressões políticas, sociais e econômicas[12]. O que se busca é o recrudescimento da garantia do cidadão de não ser investigado por influência política, social econômica ou de qualquer outra natureza. E o antídoto contra a excessiva vulnerabilidade da polícia judiciária e as odiosas intromissões é justamente a autonomia.
Autonomia pode ser entendida como a possibilidade de o ente se organizar sem que haja total dependência de terceiros, de modo a alocar cientificamente os recursos de que dispõe tendo como desiderato atingir sua missão constitucional[13].
Pode ser classificada da seguinte forma:
Administrativa: prerrogativa legal do administrador de disciplinar no plano interno as atividades legais através dos instrumentos normativos de auto-organização.
Funcional: confere a prerrogativa de dar cumprimento à lei e adotar as medidas necessárias para o exato desempenho de suas funções, não podendo sofrer influências, tanto no plano externo, quando no plano interno, do exercício de suas atribuições legais, sendo oponíveis inclusive contra outros órgãos e poderes públicos e políticos da federação.
Orçamentária: manifesta no pleno exercício das capacidades de iniciativa e elaboração de sua proposta de custeio dentro dos limites estabelecidos em lei[14].
Autonomia não se confunde com independência. Enquanto autonomia se refere à capacidade de autogerenciamento e de tomada de decisões sponte sua, independência consiste na realização de atividades sem qualquer tipo de auxílio[15].
Apesar de óbvio, convém sublinhar que autonomia não significa arbítrio, de modo que persiste a obrigação do delegado de polícia no sentido de esquadrinhar sua atuação dentro das balizas constitucionais e legais.
Também não implica descontrole da polícia judiciária, que continua sendo um dos órgãos públicos mais controlados, tanto pela fiscalização de sua atividade-fim levada a efeito pelo controle externo do Ministério Público, passando pelo controle judicial e chegando até o controle popular por qualquer do povo.
Tampouco cria obstáculos para o regular desenvolvimento da investigação criminal, mas sim a aperfeiçoa e a permite desenvolver-se melhor, mitigando sua feição inquisitória ao jogar luzes sobre o princípio da paridade de armas[16].
O benefício que a medida faculta à sociedade é imenso. É capaz de obstar o potencial de sufocamento da polícia judiciária pelo indevido contingenciamento político de verbas que busque atrapalhar esta ou aquela investigação[17].
A autonomia justifica-se sempre que houver necessidade de proteção de importantes atividades típicas de Estado. Daí sua concessão a Judiciário, Ministério Público e, mais recentemente, Defensoria Pública[18]. E, se não deve haver desprestígio contra qualquer das instituições que albergam as carreiras jurídicas, falta motivo para sustentar o tratamento diferenciado.
Também as autarquias especiais foram contempladas com autonomia, a exemplo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Agência Nacional de Telecomunicações e Agência Nacional de Aviação Civil, abrangendo inclusive a estabilidade dos dirigentes[19]. Ora, se essa proteção se faz necessária para órgãos de fiscalização administrativa, como maior razão é preciso estendê-la à instituição responsável pela investigação criminal, que repercute na esfera de bens jurídicos mais importantes para o cidadão.
Quando o artigo 144 da Constituição Federal outorgou a direção da polícia judiciária ao delegado de polícia, afastou de quaisquer outros agentes públicos ou particulares a possibilidade de dirigir a mesma instituição. A missão do chefe do Executivo e seus ministros e secretários é diversa, devendo se restringir à promoção da integração entre os organismos policiais e da implementação da política de segurança pública[20].
E não se diga que a autonomia do órgão policial violaria a cláusula pétrea de separação dos poderes. O sistema de freios e contrapesos não visa congelar os exatos delineamentos do arranjo estrutural definido pelo poder constituinte originário, sendo perfeitamente possível o ajuste aos desafios do contemporâneo Estado de Direito[21]. Em outros termos, é plenamente admissível a reengenharia institucional pontual do Estado brasileiro, com vistas a dar maior efetividade à atuação da polícia judiciária. Sem representar subtração desmesurada de atribuições e poderes do Executivo, constitui importante medida para a concretização de objetivos constitucionais fundamentais.
Importante grifar que a pretendida autonomia não seria inédita, encontrando paralelos em outras partes do mundo (guardadas as devidas peculiaridades), a exemplo de Portugal, Inglaterra e Estados Unidos[22].
Lamúrias corporativistas e com objetivo de concentração de poder não convencem, tais como as famigeradas notas técnicas oriundas do Ministério Público Federal. A parte acusadora centraliza o debate em argumentos ad terrorem. Sustenta que a polícia representa o emprego da violência estatal no seio da sociedade e que não se pode conferir autonomia a um braço armado do Estado.
Incorre no elementar erro de agrupar em suposto ente único (polícia) instituições com atribuições constitucionais totalmente distintas. Equipara a polícia judiciária, órgão policial civil com missão investigativa (artigo 144, parágrafos 1º e 4º da CF), aos órgãos militares de função de defesa da pátria (artigo 142 da CF) e de policiamento ostensivo (artigo 144, parágrafo 5º da CF). Vingasse esse tipo de falácia, o Judiciário ou o próprio Ministério Público não poderiam ter autonomia, porquanto também são instituições armadas, na medida em que seus membros possuem autorização para o porte de arma de fogo, inclusive de uso restrito[23]. De mais a mais, incute a falsa impressão de uso indiscriminado e ilegítimo da força pela polícia contra a população.
O desejo minoritário de enfraquecer, por meio de um discurso totalitarista[24] um órgão republicano como a polícia judiciária não pode prevalecer ante o legítimo interesse do cidadão de ser investigado somente por um órgão imparcial, desvinculado da acusação e da defesa. É essa instituição que representa uma das últimas trincheiras contra a corrupção que assola o Brasil desde sua formação.
Essa questão não pode ser tratada de maneira inconsequente, porque da adequada organização e efetiva institucionalização da polícia judiciária depende a garantia de direitos fundamentais de milhões de pessoas, sejam vítimas ou investigados, que têm o direito inalienável de participar de uma persecução penal imparcial.
Somente com um arcabouço institucional adequado é que se pode evitar a inanição administrativa da polícia federal e das polícias civis, impedindo seu definhamento e o enfraquecimento da carta constitucional de liberdades.
Nesse contexto, não é exagero aduzir que o fortalecimento da Polícia Federal e das polícias civis sobressai-se como interesse público primário da sociedade. Sua autonomia materializa o escudo protetivo contra interferências indevidas de setores obscuros da sociedade brasileira, permitindo o atingimento do equilíbrio entre as demandas sociais e a capacidade de resposta institucional.
Sem essas garantias, a instituição tende a ser sistematicamente negligenciada nas escolhas do Poder Executivo. Aliás, essa insuficiência de recursos materiais e humanos pode ser constatada mediante simples visita à grande maioria das delegacias de polícia do país.
Negar autonomia à instituição predestinada à investigação criminal significa abandonar a polícia judiciária à própria sorte, e ao mesmo tempo frustrar a legítima expectativa do povo de combate à corrupção e às demais espécies de criminalidade.
Como bem explica a doutrina:
A ausência de autonomia dificulta a correta aplicação da lei e impede o legítimo desenvolvimento das atividades de polícia judiciária, com o perigo de transformá-la em um instrumento a serviço dos detentores do poder, incapacitando-a do pleno exercício de suas funções constitucionalmente atribuídas (…) É importante e fundamental deixar claro que não se trata da utilização da autonomia para a obtenção de vantagens corporativistas, mas sim, na proteção institucional, com o objetivo de afastar a incapacitação para o exercício funcional de atribuições legalmente instituídas, por meio de medidas inviabilizadoras do normal exercício das tarefas institucional manifesta no contingenciamento[25].
Apesar de o debate sobre a autonomia ter ganhado maior repercussão no âmbito da Polícia Federal[26], o fato é que não devem ser economizados esforços para que a mesma solução seja implementada nas Polícias Civis, que possuem a mesma qualidade.
A sociedade não se convence mais com o discurso vazio de prioridade para as ações de segurança, dissociado de efetivas ações governamentais de investimentos na Polícia Judiciária. Nessa vereda, a autonomia encarna a justa esperança de prevenção dos problemas advindos das intempéries do poder e do capricho dos governantes, transparecendo a real natureza da Polícia Judiciária como órgão de Estado, e não de governo.
[1] Art. 2, caput da Lei 12.830/13 e art. 2º-A da Lei 9.266/96.
[2] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 180.
[3] STF, Tribunal Pleno, ADI 3441, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 09/03/2007.
[4] Art. 2º, §1º da Lei 12.830/13 e art. 144, §§1º e 4º da CF.
[5] Segundo Francisco Sannini Neto, a devida investigação criminal constitucional traduz o modelo de investigação de atribuição de um órgão oficial do Estado, com previsão legal e constitucional, imparcial e desvinculado do processo posterior (Inquérito policial e prisões provisórias. São Paulo: Ideias & Letras, 2014, p. 57).
[6] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Inquérito policial é indispensável na persecução penal. Revista Consultor Jurídico, dez. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-dez-01/inquerito-policial-indispensavel-persecucao-penal>. Acesso em: 01 dez. 2015.
[7] GOMES, Luiz Flávio Gomes; SCLIAR, Fábio. Investigação preliminar, polícia judiciária e autonomia. 21/10/2008. Disponível em: http://www.lfg.com.br
[8] NICOLITT, André, Manual de processo penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 73.
[9] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. São Paulo: RT, 2002, p. 617.
[10] Expressão de Ortega y Gasset citada por LOPES JÚNIOR, Aury, Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 407.
[11] Justificativa ao Projeto de Lei 132/12 (convertido na Lei 12.830/13), dep. Arnaldo Faria de Sá, DP 21/12/2012.
[12] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Missão da Polícia Judiciária é buscar a verdade e garantir direitos fundamentais. Revista Consultor Jurídico, jul. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jul-14/academia-policia-missao-policia-judiciari.a-buscar-verdade-garantir-direitos-fundamentais>. Acesso em: 14 jul. 2015.
[13] VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Teoria geral do Direito Policial. 3. ed. Lisboa: Almedina, 2012, p. 104.
[14] WERNER, Guilherme Cunha. Isenção política na Polícia Federal: a autonomia em suas dimensões administrativa, funcional e orçamentária. Revista Brasileira de Ciências Policiais. Brasília, v. 6, n. 2, p. 17-63, jul/dez 2015.
[15] SOUSA, Stenio Santos. Autonomia e eficiência da Polícia Judiciária da União: vetores interdependentes e equipolentes para a concreção constitucional da Polícia Federal. Revista Brasileira de Ciências Policiais. Brasília, v. 6, n. 2, p. 161-190, jul/dez 2015.
[16] PEREIRA, Eliomar da Silva. Autonomia da Polícia Judiciária: a discussão sobre a PEC 412/2009. Revista Brasileira de Ciências Policiais. Brasília, v. 6, n. 2, p. 65-76, jul/dez 2015.
[17] SOUSA, Stenio Santos. Autonomia e eficiência da Polícia Judiciária da União: vetores interdependentes e equipolentes para a concreção constitucional da Polícia Federal. Revista Brasileira de Ciências Policiais. Brasília, v. 6, n. 2, p. 161-190, jul/dez 2015.
[18] Emenda Constitucional 80/14.
[19] Lei 9.782/99, Lei 9.472/97 e Lei 11.182/05, respectivamente.
[20] RIOS, Christian Robert dos. A autonomia da Polícia Judiciária. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 01 abr. 2016. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?colunas&colunista=64733_Christian_Rios&ver=2382>. Acesso em: 18 abr. 2016.
[21] SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 306.
[22] SOUSA, Stenio Santos. Autonomia e eficiência da Polícia Judiciária da União: vetores interdependentes e equipolentes para a concreção constitucional da Polícia Federal. Revista Brasileira de Ciências Policiais. Brasília, v. 6, n. 2, p. 161-190, jul/dez 2015.
[23] Pelas regras atuais (Portaria 209/14 do Exército), podem os membros do Judiciário e Ministério Público adquirir, para uso particular, 2 armas de fogo de uso restrito, de qualquer modelo, abrangendo até mesmo o calibre 9 mm.
[24] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 395.
[25] WERNER, Guilherme Cunha. Isenção política na Polícia Federal: a autonomia em suas dimensões administrativa, funcional e orçamentária. Revista Brasileira de Ciências Policiais. Brasília, v. 6, n. 2, p. 17-63, jul/dez 2015.
[26] Discussão capitaneada pela PEC 412/09 e PEC 381/2009.
*Henrique Hoffmann Monteiro de Castro é delegado de Polícia Civil do Paraná, mestrando em Direito pela Uenp, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF e em Segurança Pública pela Uniesp. Também é professor convidado da Escola Nacional de Polícia Judiciária, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, da Escola da Magistratura do Paraná e da Escola do Ministério Público do Paraná e professor-coordenador do Curso CEI e da pós-graduação em Ciências Criminais da Facnopar. Redes sociais: Facebook, Twitter, Periscope e Instagram
Fonte: Site Consultor Jurídico