Ao policial que lê
Por Edemundo Dias de Oliveira Filho*
Hannah Arendt, em seu mais célebre livro A Condição Humana, afirma: “Só os vulgares consentirão em atribuir a sua dignidade ao que fizeram; em virtude dessa condescendência serão ‘escravos e prisioneiros’ das suas próprias faculdades e descobrirão, caso lhes reste algo mais que mera vaidade estulta, que ser escravo e prisioneiro de si mesmo é tão ou mais amargo e humilhante que ser escravo de outrem”. Em outra obra-prima, Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal, Arendt afirma que o mal banal se refere a um mal marcado pela ausência da capacidade de refletir a que indivíduos massificados, à maneira de um rebanho, são conduzidos.
Como já disse aqui em outro artigo, vivemos dias sobremodo difíceis, em meio a uma sociedade doente, surtada, esquizofrênica… No centro desse contexto vejo a polícia e policias — amados ou não, quase todos perdidos de armas na mão, ataviados à antiga lição de morrer pela pátria e viver sem razão, como diria Vandré, em sua Pra Não Dizer Que Não Falei De Flores.
Com efeito, percebe-se amiudar-se na sociedade pós-moderna não apenas a violência como ferramenta única de contenção da violência e da criminalidade, mas, o que é pior, como máquina de pródiga catarse e entretenimento, o que seguramente promove e acentua a intolerância, a discriminação, o elitismo e o preconceito. O simplismo desse nefasto discurso absorve as massas justamente porque é fluido, superficial, anódino mesmo. Aliás, a suspensão do juízo de valor e da capacidade crítica dá a tônica da qualidade da propagação dos discursos que legitimam a violência, seja física ou simbólica (ao som do “tem de matar mesmo!”). E, faceiramente, vai se desenhando a realidade de que não é preciso monstros para que sejam praticadas monstruosidades.
É justamente aqui que me preocupo com a polícia, porquanto faço parte dela, e como cidadão recebedor dos seus serviços. Por isto, o alerta: o mal banal distingue-se, sobretudo, pela ausência de pensamento. Por isto, a pergunta: quem pensa a polícia hoje no Brasil? A ausência ou a renúncia do pensamento nessa imprescindível instituição pública torna-a apenas refratária e caudatária do impetuoso e deletério pragmatismo populista. Contudo, há uma mente por trás.
A mente por trás do mal banal que a submete a polícia a essa engrenagem avassaladora está relacionada a um vácuo reflexivo. É fruto da tacanha incapacidade de se manifestar, de se posicionar, de interferir nas ações que se lhe propõem e impõem executar. A “obediência cadavérica” está na contramão de qualquer processo de autonomia moral, e o resultado de tal execução irreflexiva pode, enfim, produzir vilões à revelia de suas próprias boas vontades.
Quando a capacidade de julgar por si mesmo está suspensa, adormecida ou anestesiada, homens e mulheres não reconhecem as atrocidades nas quais estão submetidos, envoltos e, alienados; tornam-se, por conseguinte, insensíveis aos seus próprios sentimentos mais profundos, mais genuínos, mais plenos, mais verdadeiros, acolhendo com normalidade e naturalidade a barbaridade ao seu derredor, para depois se afogarem no álcool, nos barbitúricos e ansiolíticos dos seus mais noturnos pesadelos. Isto quando ainda suscitam os escrúpulos de consciência e os constrangimentos mais íntimos.
Outrossim, a banalização da violência pode ser evitada a partir de experiências educadoras e construtivas. A simples meditação pode impedir que o sujeito policial seja conivente com o mal ou mesmo seu protagonista, mesmo enquanto sobressai o brocardo maquiavélico — os fins justificam os meios.
Assim, acredito e aspiro por um milagre. O prodígio da ação reflexiva da polícia brasileira, na qual repousa a esperança de iniciativas que impeçam a barbárie, a violência pela violência, o olho por olho, evitando que a crueldade adquira a eficácia única e suficiente pela paz e que a selvageria midiática se transforme na grande relevância do prazer, do espetáculo e do glamour.
*Edemundo Dias de Oliveira Filho, advogado, presidente da Academia Goiana de Direito (Acad) e da Comissão de Segurança Pública e Política Criminal da OAB-GO.
Fonte: Jornal O Popular