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Acreditar é a receita

Acreditar é a receitaPor José Renato Nalini*

A liberdade é o primeiro direito fundamental explicitado na Constituição Federal. O artigo 5º do pacto federativo inicia com a menção à vida. Mas vida é pressuposto à fruição de direito. Não há qualquer direito para o titular dela desprovido. Daí a extrema relevância da liberdade e, paradoxalmente, a relativa desconsideração que ela merece em estágios inferiores de civilização.

Está em tramitação no Senado projeto de lei que determina a apresentação, pela polícia, de presos a autoridade judicial em, no máximo, 24 horas após o flagrante. A chamada audiência de custódia tem por objetivo tutelar adequadamente a liberdade. Conferir efetividade à opção constitucional que a coloca em primazia, antecedendo a igualdade, a propriedade e a segurança.

Desde a década de 1970 o Brasil se comprometera a apresentar à autoridade judiciária o preso em flagrante. Ratificou o compromisso na Constituição, que obriga o Estado a submeter ao juiz quem se viu segregado da liberdade, para aferir a legalidade e a legitimidade da prisão. O Pacto de San José foi internalizado em 1992 e restou descumprido.

Mas não era impossível a coerência do Brasil em relação ao tema. Bastava vontade política. Esta resultou de uma série de circunstâncias. A conscientização dos agentes e o cultivo de um espírito de convívio solidário. A superação das diferenças. A união em torno de um objetivo comum.

O êxito da iniciativa reflete a viabilidade do enfrentamento de questões aparentemente insolúveis para os rançosos, conservadores e inebriados pelo anacronismo.

Desde fevereiro, quase 10 mil pessoas destinadas a uma permanência no cárcere vinculada a circunstâncias aleatórias se apresentaram perante os magistrados do Fórum Criminal da Barra Funda. Cerca de 40% delas puderam permanecer na fruição desse inalienável direito à liberdade. Não fora a audiência de custódia, só se avistariam com o juiz da causa no último ato da instrução criminal, o interrogatório.

A depender de vicissitudes tão comuns ao sofisticado processo criminal brasileiro, esse contato pessoal entre preso e juiz poderia ocorrer após meses ou mesmo anos depois do momento da prisão.

As vantagens são evidentes. Não se mantém no cárcere quem nele não deva permanecer. Esvazia-se a mácula da prisão sem julgamento. Reduz-se a tensão do perverso sistema carcerário. Rompe-se o ciclo de recrutamento do jovem injustiçado pelas facções criminosas, que a ele oferecem aquilo que a sociedade não consegue assegurar.

Como vantagem adicional, alivia-se um sistema penitenciário que reflete a equivocada política penal brasileira, a defender o encarceramento como única resposta a quem praticou uma infração.

A experiência exitosa da audiência de custódia resgata a imagem brasileira comprometida junto à comunidade internacional, diante das reiteradas denúncias de falência do equipamento prisional. Faz a comunidade jurídica repensar o objetivo da pena. Propicia à população resgatar o valor da liberdade.

Só reconhece o valor da liberdade quem sofreu cerceamento injusto, pois permanecer livre é o estado natural do ser humano. Tão essencial como o oxigênio que parecia faltar à democracia desta República, onde a retórica prevalece e a observância dos comandos fundantes é promessa nem sempre honrada.

Como toda obra humana, é suscetível de constante aprimoramento. Todavia, é um evidente testemunho de que não há obstáculos intransponíveis para se honrar um compromisso imposto pela ordem internacional e reiterado na Lei Maior do nosso país, à qual todos devem se submeter.

* JOSÉ RENATO NALINI, 69, é presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Fonte: Jornal Folha de S.Paulo

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