A farsa do debate do ciclo completo de polícia
Chamou atenção na semana passada a presença de oficiais da Polícia Militar e delegados da Polícia Civil em um debate realizado na Assembleia Legislativa de São Paulo. Oficiais e delegados estavam em vários plenários da casa, divididos por uma faixa vermelha, e trocando provocações que beiravam o insulto. Era um evento para discutir a adoção do ‘Ciclo Completo de Polícia’. Os oficiais da PM defendem que o tal ciclo é uma das grandes soluções para os graves problemas da caótica situação da Segurança Pública no País.
O ciclo completo de polícia se dá quando uma força policial lida com a ocorrência criminal, do momento em que ela chega ao local dos fatos até o instante em que o criminoso é preso. Ou seja, junta-se na mesma força policial a prevenção, a repressão e as investigações dos crimes. No Brasil, a PM é responsável pela prevenção e repressão e a Polícia Civil pela investigação. Há duas formas principais de ciclos completos. O primeiro é a atribuição de jurisdição policial por área geográfica. Por exemplo, uma polícia cuidaria de cidades acima de 500 mil habitantes e outra ficaria responsável pelas demais cidades. O segundo tipo seria por tipo de delito. Por exemplo, uma polícia lidaria com delitos menos graves e a outra com delitos mais graves.
Num olhar desatento, a ideia de ciclo completo faz todo o sentido. Porém, uma análise mais detalhada do que está por detrás da proposta em discussão revela que estamos pegando uma boa ideia e a transformando em um monstro. O debate em prol do ciclo está sendo capitaneado pelos oficiais da PM, suas associações de classe e os seus deputados eleitos. É uma luta dos oficiais da PM travestida de algo que irá beneficiar a sociedade, mas que na realidade irá dar ainda mais poder para o oficialato das corporações. Os dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que a PM do Brasil é a polícia que mais mata no mundo. Não que o policial não tenha que utilizar o poder letal quando necessário. É óbvio que sim. Mas é senso comum na sociedade que as PMs matam e exercem violências cotidianas contra a população, principalmente as mais vulneráveis. É praticamente impossível passarmos uma semana sem notícia de abusos cometidos pelas PMs do Brasil que pouco ou nada fazem para mudar a sua lógica de atuação. Dar o ciclo completo para as PMs no atual modelo é dar a possibilidade de que mais arbitrariedades sejam cometidas contra o cidadão. Isso sem falar que dentro das PMs, hoje, praças não são tratados como seres pensantes, mas como subalternos de uma lógica organizacional caduca.
Os defensores do ciclo completo dizem que este é o modelo utilizado nos países do ‘primeiro mundo’, mas esquecem de apontar que o modelo nunca vem sozinho. O ciclo completo em geral vem acompanhado de carreira única nas polícias e um controle externo efetivo da atividade policial, dois temas que as cúpulas das PMs se quer tocam. Há questões organizacionais importantes a serem consideradas. As PMs não possuem prática, não têm formação e não têm histórico de investigação de crimes. Via de regra, quando fazem isso, o fazem adotando a violência, a ameaça e a humilhação das pessoas. Para as PMs ter ciclo completo de polícia, elas precisariam mudar radicalmente a sua formação e a cultura organizacional que possuem hoje. Isso sem falar na péssima relação que as PMs constroem com as Guardas Municipais. Ter ciclo completo requer uma outra polícia da que temos hoje.
A ideia do ciclo completo como o grande salvador da pátria mascaras problemas importantes da segurança pública no Brasil. Primeiro, o sistema de justiça criminal é caro, burocratizado, distante do cidadão e atua, fundamentalmente, contra os pobres. É urgente desburocratizar e simplificar tal sistema, e isso pode ser feito sem uma mudança mais radical. Outro grave problema é que as penas alternativas não são efetivadas no Brasil e isso precisa ser mudado urgentemente. A investigação policial no Brasil está tecnologicamente defasada, é extremamente burocratizada e, em boa parte dos casos, é ineficiente. A necessidade de mudança é urgente, mas só pode ser feita com uma melhora expressiva da gestão das Polícias Civis, a redução do poder dos clãs internos, o aumento e a renovação do efetivo destas polícias e melhorias nos salários dos policiais. A Polícia Científica está praticamente destruída e precisa ser reconstruída urgentemente. Melhoras de condições de trabalho também são urgentes para os praças nas PMs.
Gastamos muito e mal com segurança pública no Brasil.
Podemos até pensar em ciclo completo de polícia, mas este debate não pode estar sequestrado pela lógica corporativista e não pode ser conduzido de maneira autoritária. Apenas uma força policial não pode conduzir o debate em oposição a outra. Reformas nas polícias são urgentes, mas temos que tomar cuidado para que o novo modelo não seja pior do que o anterior.
*Rafael Alcadipani é professor de Estudos Organizacionais da FGV-EAESP e Visiting Scholar no Boston College, EUA
Fonte: Jornal O Estado de S.Paulo